Entendo as Rebeccas deste mundo. E quanto mais vivo, mais admiro e vejo o quanto são necessárias.
Refiro-me à personagem criada por Daphne du Maurier. É tão interessante... uma mulher que não existe. Mas que é personagem mais forte de toda a história. E que usou os homens porque os achava uns idiotas, por se encantarem com a sua beleza. "São todos uns estúpidos!" - acho que a certa altura surge citada pela governanta.
E eu entendi. Nesse instante, entendi
Rebecca e entendi a admiração da empregada por aquela mulher especial. Ela tinha todos os homens na palma da mão. Porquê? Porque era lá que eles queriam estar. ELES lhe deram esse poder.
Devia ser extremamente frustrante ser tão inteligente e a primeira coisa que um homem via era a beleza. Depois vinha o fascínio pela sua mente, mas sempre, sempre, todo o homem desejava ir para a cama com ela. Asco. Dessa forma nenhum homem poderia jamais interessar-lhe por muito tempo. Não dá "pica", por ser tão fácil. E por ser frustrante, a excitação está no castigo. Por isso ela encontrava outras formas de lidar com eles, excitava-a os jogos psicológicos e brincava com todos, desprezando-os. Deixava-os pensar que eram especiais mas não gostava de nenhum. Ela era feminista.
Essa reverência de que a personagem foi vítima desde criança, é-me fácil de entender. Assim como achei brilhante a forma como ela conseguiu "despedir-se" do mundo antes da sua beleza a trair. E ainda por cima, fazendo um homem acreditar que a assassinou. Oh, ele a matou, sim! Mas porque ela assim o quis. BRILHANTE.
Bom, mas toda esta introdução para contar que estava no supermercado e um homem atrás de mim fala comigo em inglês e quando se afasta, ainda a falar, reconheço de imediato que é português, de Lisboa, por sinal. Só então viro-me na sua direcção e, por simpatia, pergunto-lhe, em inglês:
-"É português?"
-"Sou".
-"Também eu"
-"Ah" - diz com uma expressão de incómodo e a afastar-se.
Entretanto meto-me numa fila de atendimento, que ele por sinal corta e passa na frente assim que termina de escolher o que quer e quando chega a minha vez, ele está a terminar de ser atendido, faz por não estabelecer contacto visual comigo e regressa para perto de um amigo (também tuga) a rir, e a dizer algo onde a palavra "ela" entra na frase. Não sai dali de imediato, como seria de esperar para quem mostrou tanta pressa que até se meteu na frente.
Fiquei com a sensação de que fez troça, incomodou-se. Não gostei dele. Caiu-me mal que se tenha metido à frente da fila, acho que demonstra que se acha acima dos restantes. E mostra falta de respeito por mim, que estava nela, e ele sabia muito bem para quê; precisamente pelo mesmo motivo que ele: meter o euromilhões.
Presumo que é um desses tugas que vem trabalhar para uma empresa de informática ou dados. Têm sempre a mania que são mais do que são, que estão acima dos restantes emigrantes da nação. Não gostam de se "misturar".
Fiquei a pensar: "se me visses com menos 15 anos, aposto que ias derreter-te em simpatia". "Se eu fosse famosa, também ias gostar de me encontrar numa fila de supermercado". "Mas como não sou essas coisas, é como se não tivesse valor. Sentes-te incomodado e totalmente desinteressado em ser simplesmente simpático".
E fiquei a pensar nisto... ali estava a razão de existirem «Rebeccas».
E devem existir. Faz sentido. Espero que existam.
Sei o que é ser assediada por ser jovem com um palmo de rosto bonito. Ou por ter desenvolvido curvas precocemente. Sei o que é ser uma «Rebecca», no sentido de entrar numa sala e todas as atenções virarem-se para ti. Aconteceu-me algumas vezes. E depois apareciam rapazes, uns atrás dos outros... interessados em "conhecer-me", estendendo-me convites para tudo e mais alguma coisa, olhando de lado para outros rapazes, tentando ser aquele que agrada mais. Nunca gostei, nunca me senti confortável e por isso desenvolvi vontade e necessidade de ficar "apagada", ser discreta, não evidenciar nada, até mesmo de ocultar a minha inteligência, conhecimentos, interesses. Porque eram muitos, diversificados e isso parecia intensificar ainda mais o interesse masculino. Fiz-me de "parva" por me incomodar com as atenções recebidas. Aquilo que representas, acabas por te tornar! Sempre escondi a minha beleza, talentos e inteligência. Não foi muito inteligente de minha parte... Mas foi o que fiz. Não fiz uso do meu poder. Desse poder que me foi conferido por todos eles, mas que nunca desejei possuir. Rebecca usou-o com deleite. Fez ela muito bem!
Olhei para aquele homem português não muito atraente, quase careca, achando-se acima da minha pessoa e fiquei a pensar se ele soubesse...
O que faço profissionalmente hoje não tem nada de nada a ver com aquilo porque me interessei desde girino :). Mas nos meus 20s, 30s, andei a fazer coisas que amei de paixão. Coisas que tinham a ver com o grande público e que podiam facilmente ter-me catapultado para a fama, transformando-me numa figura pública. Muitos rostos, femininos e masculinos que andam nas revistas, que surgem na televisão, são dessa época. A diferença é que eu nunca perdi a necessidade de me apagar. O que me prejudicou. E esses que aparecem, sempre quiseram aparecer. Fazendo de tudo para o conseguir. Tudo...
Imaginem então se este tuga tivesse encontrado no supermercado a Catarina Furtado? Ou a Cristina Ferreira? Todas produzidas e maquilhadas, claro. Porque se estivessem de gorro na cabeça com o cabelo tudo lá enfiado como eu estava, se calhar nem elas teriam a sorte de serem tratadas com as simpatias de bajulação de que já devem estar mais do que acostumadas.
Acham que este tuga ia ficar-se pelo "Ah" e fugir a milhas?