quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A Funerária



Vou confessar uma coisa. Gostava de ter visto como a agência funerária procedeu à preparação do corpo de um familiar que foi cremado.

Na altura estava naturalmente abalada. Seria uma experiência emocional forte e banhada a lágrimas. Mas ainda assim, se tal possibilidade fosse criada e a morte não fosse este enorme tabu, gostava de ter estado presente. Sinto que é algo que cabe a alguém da família fazer.

Não saber o que lhe fizeram ainda me assombra. Temo que tenham agido de forma ilícita. Afinal, podem fazê-lo. Não existe ninguém a vigiá-los. Recordo achar estranha a forma que o corpo assumiu no caixão. Algo pareceu não estar bem. Principalmente as pernas. Duas coisas finas e baixas que mal se viam debaixo do tampo que as cobria, mas que estranhei.

Foi o primeiro vislumbre de um corpo sem vida. Não sabia como ia reagir. Sou forte. Principalmente quando é preciso. Nas outras ocasiões, sou mole como uma trouxa de ovos. Então, quando o vi, soube apenas isto: “este não é ele!”.

Uma certeza absoluta e forte. Que me fez acreditar ainda mais na teoria do espírito ser o que somos, e o corpo apenas o invólucro. Sem espírito, aquele corpo que me habituei a ver com vida durante 30 anos, era uma casca sem nada.

Ainda assim, é uma casca que merece o direito de ser extinta conforme o desejo do seu antigo ocupante, ou familiares. O que me garante esse tipo de ética por parte da empresa funerária?

Nos tempos que se vivem, são cada vez em maior número os relatos de casos macabros de roubo de partes de cadáveres. Os restos humanos são um negócio que, por detrás do visível (despesas de caixão, de enterro, de tudo o mais) tem um lucro ainda maior por detrás do que não se vê. E quem, num funeral de um ente querido, vai-se pôr a verificar se o corpo não sofreu qualquer acção desnecessária?

Então temo isso…
O retirar de ossos, as pernas partidas ou inexistentes, tecidos e sei lá mais o quê… cada vez mais só se pensa em lucrar a troco de nada, e nesta área da morte, o terreno é fértil.
Cada vez mais, o ser humano é tratado da mesma forma como uma vaca ou qualquer outro animal no matadouro: tudo se aproveita. As peles, as unhas, as pestanas… não existem desperdícios.

Quem me garante que ao enterrar os nossos, não passaram já eles por um processo semelhante?

Sei que existem procedimentos necessários, de modo a conservar o corpo para aguentar o velório. Não sei mesmo quanto tempo pode ele aguentar, desde que sai da arca frigorífica para ser velado a amigos e familiares, até ter de ser coberto e enterrado/cremado por entrar em decomposição.

Será que ainda se retira todo o sangue das veias e se enche de líquido embalsamador? Será que se dão a esse trabalho e despesas, quando dali a poucas horas o corpo vai virar cinzas e não resta nenhum vestígio de coisa alguma para comprovar seja o que fôr?
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É o crime perfeito?

No hospital onde faleceu, perguntaram-nos se queríamos fazer uma autópsia. A resposta foi Não. A pessoa não ouviu, não quis ouvir, ou está instruída para agir de modo a incentivar a realização de autópsias, pois continuou a falar como se a resposta tivesse sido positiva. Disse que o corpo «ia para autópsia», e foi corrigida. Lembraram-na que a autópsia não tinha sido solicitada.

Será que, mesmo assim, realizaram-na à mesma? Será que já saiu esquartejado dali para a funerária?

De vez em quando, estas ideias vêm fazer-me uma visita. Assim foi hoje, e por isso escrevo sobre este assunto.

Certificar-nos que as coisas correm como desejadas, nada mais é que honrar a memória dos que partiram.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O dia em que me apeteceu comer fígado



O desejo de comer fígado surpreendeu-me. Passava pela área das carnes no supermercado e aquela textura escura, brilhante e viscosa despertou-me o desejo.



Isto é deveras surpreendente, pois vejamos os factos:

1) Detestei sempre fígado.
2) Estava enjoada de carne.


Em menina, obrigavam-me a comê-lo. A experiência não podia ser mais insuportável. Só o cheiro que ficava pela casa era suficiente para me afastar. Abominava-o. E colocar aquilo na boca, o sabor, brrr..... não conseguia. Fiz de tudo para me descartar de cada pedaço que me obrigavam a engolir. Fingia engolir, escondia no puré, ia ao wc cuspir na sanita. Porque me obrigavam a comer aquilo? Não gostava!

Cresci e não mais fui obrigada a comer isto. Nem remotamente estava no cardápio. Para mim não existia, não era opção. E então, uma ida ao supermercado e um vislumbre ocasional, mudou tudo.
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Muitas vezes fiquei a pensar neste acontecimento. Como é possível, detestava tanto, até o cheiro daquilo, e algo no meu organismo desejou décadas volvidas, consumir aquele pedaço de carne. O cheiro virou perfume, o sabor delicioso, a textura adorável. Senti-me revigorada após devorar o fígado. O meu único receio era pensar nas doenças como a BSE e como é desanconcelhável consumir os órgãos internos de um animal. Hã... mas porquê não haviam essas preocupações quando era miúda?
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Andavam as aves com gripe, as galinhas com febre, os peixes com mercúrio, as vacas loucas e nada parecia ser seguro. E eu a consumir fígado, com gosto, quando sempre o detestei. Porquê?
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Mais tarde descobri sofrer de anemia. E descobri também que o fígado é rico em ferro, um nutriente que, no caso, tenho em carência. Para mim ficou explicado! E passei a admirar ainda mais esta máquina surpreendente que é o corpo humano. Como soube ele o que comer? Como, volvidos anos e anos, nunca mais tendo degustado aquilo, soube ele que era o que precisava comer?
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O Corpo Humano é espantoso.
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Por isso, deixem as grávidas ter os seus desejos e comam o que vos apetece. O organismo lá sabe o que diz... escutem. Pena que ás vezes fala chinês e não entendemos.
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Quando passei a gostar de fígado, passei também a sentir saudades de outros cheiros de cozinha que me perturbavam na infância. O cheiro da comida dada ao cão, por exemplo. Os chamados «miúdos» de frango. Ainda não sei bem em que consistem, mas o animal consumia daquilo aos quilos. Era só para ele. Era alimento de cão, não de pessoas.
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Agora invejo-o tanto! Cheguei, inclusive, a desejar o prato que estava no chão para o cão...
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