Não, não é cadeira de Salazar.
Nem é a cadeira do poder.
Mas foi disputada como se fosse.
Finalmente tenho a minha cadeira de volta. Demorou três dias, mas consegui que quem a levou ma devolvesse. A desagrado mas sem discussões. Tive de insistir todos os dias, num tom de voz relaxado e sem autoridade. Tem de ser assim, quando se trata da M.
É uma cadeira de jardim, dobrável, em madeira, que obtive o ano passado e armazenei na arrecadação, para que todos a pudessem usar quando fossem para o jardim. Só que nunca ninguém o fez - sem ser eu. Ninguém gosta de ir para o jardim - somente eu.
Nos últimos dias usei-a sempre. Estando o quintal com mato alto, a cadeira tornou-se a única forma de conseguir usufruir do espaço de forma confortável.
No primeiro dia que fiquei no jardim e depois entrei em casa com ela no braço para a arrumar, voltei a colocá-la na arrecadação. Fui vista pelo rapaz.
No dia seguinte, fui vista pela rapariga.
Mesmo estado na conversa comigo toda a manhã, ela perguntou:
"Estiveste o dia todo lá fora?"
-"Não. Apenas umas horas".
No dia seguinte voltei a precisar e quando abri a porta da arrecadação para puxar a cadeira, não a encontrei.
Fiquei cismada. Achei que podia ter sido o rapaz no intuito de me causar incómodo. Enviei um texto à M. perguntando se sabia da cadeira. Responde-me que foi ela que a tirou porque vai usá-la durante a aula (ela começou a fazer um curso online algures entre o primeiro e segundo confinamento). Então desejei-lhe uma boa aula.
Na minha lógica, assim que ela terminasse ia devolver a cadeira ao lugar de onde a tirou. Tal como eu sempre o fiz.
Depois cai em mim e percebi que a M. nunca precisou da cadeira antes. Foi só me ver a usá-la, que logo a levou. Conectei os pontos e percebi que, por ter me mostrado a usar a cadeira, a reacção da M. foi tirá-la para a manter consigo. Se não insistisse, a M. ia fingir que não se lembrava que lha pedi.
Porquê queria ela outra cadeira se já tem pelo menos uma? Há meses que ela está sempre a bater com todas as portas da casa, portas de armários, a fazer banzé e quando alguém lhe dirige a palavra grita que não tem tempo. Decerto que frequenta o curso online confortavelmente sentada. Porque haveria ela de querer outra cadeira? Porque me viu a usá-la. E como alguém que cobiça e não quer que o outro fique com algo que lhe agrada, sorrateiramente a tirou. Por esta altura já sei que quando ela toca em algo... toma posse. Não devolve mais.
Era algo que não podia permitir. Além disso, o conforto da cadeira já me tinha convencido em levá-la para o quarto. Tenho o computador novamente a funcionar e estava a querer colocá-lo numa mesa que tenho. Faltava-me a cadeira. Sendo esta dobrável e confortável, e fui eu que a trouxe cá para casa, pareceu-me ideal. Não teria de sentir incómodo por a tomar.
No dia seguinte, nem sinal dela ter removido a cadeira do seu quarto.
Espero o momento certo para lhe pedir, com casualidade, a cadeira. Explicando que estava a pensar colocá-la no quarto para escrever no computador, porque preciso pesquisar empregos, fazer o currículo, etc.
Ela praticamente diz "não" e desculpa-se que precisa dela à tarde. É também a primeira vez que usa a palavra "partilhar". O intuito dela, no fundo, é ficar com tudo para si. Nunca foi capaz de partilhar! Só de tomar posse. Estava a querer atirar-me areia para os olhos, fazendo-se de pessoa bom carácter que vai abnegar da «sua» cadeira por algumas horas, em caracter temporário. Na realidade nunca mais a iria ver se fosse na conversa dela.
Já a conheço tão bem que sei que a forma como passa a exercer o seu poder aumenta a cada vitória com estas pequenas coisas. Dá-lhe a ideia de que consegue tudo o que quer. Depois, numa próxima ocasião, a escala seria maior.
Mais que não fosse por uma questão de necessidade para o bem comum, tinha de colocar um travão a esta sua postura. Ela sempre consegue o que quer, mais que não seja por exaustão. Isso fê-la crescer com uma noção equivocada de como as coisas devem desenrolar-se. Ela espera mesmo que todos lhe obedeçam e se comportem conforme os seus mandamentos.
Chama-se a isso uma miúda "mimada". Tal como as crianças, quando contrariadas desenvolvem uma copiosa birra com laivos de ataque de fúria. Praguejam, batem portas, fazem barulho, são desrespeitosas. Assim tem sido a M. Então é preciso fazê-las ver que "pedir uma cadeira" não é algo contra elas, não é algo para as prejudicar. E faz-se isso nomeando as próprias necessidades, fundamentando-as em algo que a pessoa egoísta possa compreender e tenha dificuldade em refutar, mesmo não aceitando a ideia.
Não menciono mais o assunto até o dia seguinte. Ela tenta impingir-me uma do set da mesa da cozinha. Que é bonita, redonda e triangular. (Como um queijo da vaca-que-ri) mas não se dobra e por isso não se ajusta ao pequeno quarto que tenho. Esse argumento ela não podia contrariar. Ela própria tirou uma cadeira da mesa da cozinha que levou para o seu quarto, assim que chegou à casa. Sem cerimónias. Nunca mais a vimos. Nunca a devolveu. Nem perguntou se podia levar. Simplesmente tirou, sem se interrogar se poderia fazer falta. Se todos concordavam.
Este gesto e outras atitudes que demonstra ter, fez-me entender que é uma usurpadora. Tira espaço dos outros, ocupa, não quer saber. Por exemplo: Cada um de nós tem uma prateleira no frigorífico. Ela também tem só que, além dessa área exclusiva, ocupa todas as que deviam ser partilhadas. Todos os espaços nas duas portas do frigorífico são ocupados com coisas dela. E nota-se perfeitamente que enfia coisas sem nexo e que cabem no seu espaço privado em espaços que seriam mais úteis para outras coisas. Mas como o que ela pretende é reservar o espaço para si - nunca que cedeu um centímetro. Nem uma única vez consegui ter uma embalagem de leite, ou sumo - o que fosse, na prateleira da porta do frigorífico. Nesse espaço que devia ser só para embalagens de grande porte, ela coloca frascos, o que for - só para dizer "este espaço é meu, tem as minhas coisas".
E se alguém as mudasse para lá enfiar a sua garrafa de leite, ela voltava a colocar tudo no lugar, refilando que não gosta que mexam nas suas coisas, que as pessoas não sabem viver numa casa partilhada e respeitar os outros, que teria de desinfectar tudo de novo por causa do Covid, etc.
Uma vez pôs uma taça de bolo cheia de arroz na prateleira de uma colega. Até tinha espaço na sua - se fizesse um ligeiro esforço nesse sentido. Mas achou por bem que ela (os outros não) podia "invadir" o espaço alheio. A dona da prateleira não disse nada mas confidenciou-me que ia para trazer mais coisas do supermercado mas sabia que não teria onde as colocar, então não as trouxe. Postura que fortalece o sentido "quero, posso e mando" da M.
Fiquei a contar os dias em que a taça ficou a ocupar o espaço. Ali ficou cheia de arroz intocado por uma semana mais um dia - num total de oito dias. E o que é pior: não estava a ser consumido. Se era para ir parar ao lixo, que o deitasse fora de imediato. Mas não... decidiu armazenar no espaço da colega.
Mais tarde disse-me várias vezes que só gosta de comer arroz no proprio dia - talvez no seguinte. Fez uma quantidade absurda dele e deixou-o por 8 dias a ocupar o espaço de outro colega, sabendo que provavelmente não lhe ia tocar. Causou inconveniências desnecessárias. Isso revela um carácter pouco empático com terceiros.
Este exemplo da taça de arroz é até insignificante comparado a muitos outros que podia dar. Mas lembrei-me deste.
Por isso era importante para mim não permitir que ela levasse a dela adiante com a situação da cadeira. Calma, serena, sem me precipitar, fui indicando que queria a cadeira. A minha própria cadeira! Ela não queria ceder. Estava a dizer-me que precisava dela. E ia precisar sempre.
Mas ao terceiro dia enviei-lhe um sms dizendo que estava um dia lindo de sol, apetecia-me ir para o jardim, e ela trouxe a cadeira. Voltou a dizer-me que era "emprestada" que eu não ia ficar com ela e eu voltei a abanar a cabeça ao mesmo tempo que explicava que precisava dela para a usar no quarto, e me sentar ao computador.
-"Não estou satisfeita. Não estou nada satisfeita! - diz.
- "Compreendo que possas estar aborrecida porque eu a deixei na arrecadação para qualquer um usar. Mas não vou comprar uma cadeira nova..."
- "Não! Não quero ouvir. Não estou satisfeita" - vira as costas e sai.
Aborrecida sim, mas não irada. Consegui evitar a fúria do monstro.
Mas mais do que isso, consegui que a M. vivesse uma situação na qual não obteve o resultado pretendido. Só assim uma pessoa cresce e evoluí, certo?
Da próxima vez, talvez se lembre e pense duas vezes quando lhe apetecer tirar de alguém ou de um espaço em comum em particular, algo de forma permanente.