Desabafei aqui noutro dia que me surpreendi com o ruído de alguém, uma mulher, a entrar porta a dentro e a gritar o nome de um dos rapazes que cá mora.
Desci para ver quem era pois a voz não era igual a nenhuma das mulheres que cá vive. Quem terá entrado nesta casa sem bater à porta? Sem qualquer cerimónia? Como se a casa lhe pertencesse?
Seria a mãe de uma colega?
(na altura os pais de uma das raparigas cá de casa estavam cá a dormir).
Não. Era a rapariga da casa ao lado, a tal que me infernizou a vida quando lá vivi temporariamente por umas semanas. A que deixava recadinhos escritos na porta do frigorífico, todos para me provocar. A mentora da "brincadeira" do mantimento desaparecido, a "chefe" da matilha e a mais barulhenta e desrespeitadora de todos na casa ao lado. A sua voz estridente e os seus gritos e berros são para mim intoleráveis. Felizmente, só os tenho de aturar da outra casa para esta. Sempre posso fechar a janela ou recolher-me do jardim para o interior.
Antes mesmo de sair da casa ao lado, por saber que aqui vinha morar um jovem rapaz a trabalhar na mesma empresa que a histérica vizinha, temi que isso fosse um elo que a metesse novamente na minha vida. E temi o que vi acontecer naquele dia: que ela o usasse como pretexto para se infiltrar regularmente nesta casa.
A vizinhança sempre existiu, mas não ao ponto de se frequentar a casa uns dos outros. Apenas sabiam da existência de inquilinos por se ter a senhoria em comum. Em mais de um ano, os outros nunca cá tinham entrado nem sabiam como a casa era ou quem cá mora.
Imatura e mal intencionada como sei que ela é, cheia de joguinhos e indirectas, seria de esperar um comportamento destes. Sabe que não é bem vinda, pelo menos por minha parte. Claro que isso a faz desejar impor a sua presença com regularidade.
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Ontem, depois do emprego e de uma passagem pelo supermercado do qual trouxe mantimentos que pensei partilhar com os restantes, cheguei a casa e fui surpreendida por uma festa. Estavam todos a conviver, a comer e a beber, ocupando a sala, a cozinha e o jardim. Ao todo, quatro ou cinco outras pessoas.
Temi de imediato a presença da histérica. E claro, não foi preciso esperar muito e ela apareceu. Toda produzida, no seu "melhor" comportamento, a lançar charme como toda a jovem com um palmo de cara julga saber fazer e a procurar conter-se no histerismo. Sei que sabe representar com eficácia porque tem de ser boa atriz para se manter no emprego que tem, lidando com o público de forma respeitosa e tolerante. Coisa que não é da sua natureza. Estranhamente, muito comum nas pessoas que partilham aquela ocupação.
Não me cumprimentou. A sua "boa" educação resumiu-se a cumprimentar os que faziam parte da festa. E, claro, eu não fui convidada a participar. Mais uma vez, sou a que ocupa a casa mas não sou incluída. Logo no dia em que estava a pensar oferecer-lhes, mais uma vez, uns mantimentos que havia comprado e, quem sabe, havia a oportunidade de fazer uma refeição juntos.
Mas não deixei que nada disto me afectasse.
Mal dava para me mexer na cozinha. Ao invés disso, fiz o que planeava fazer - com a excepção para o cozinhar um peixe no forno. Mais uma vez dediquei-me ao "jogo de Tetris" que é tentar encaixar os mantimentos na pequena prateleira de frigorífico que me cabe. Depois dessa morosa tarefa, decidi comer um pouco de salada e, usando o anexo à cozinha onde estão as máquinas de lavar que dá acesso também à lateral da casa perto do jardim, terminei a almoçar uma salada, posteriormente acompanhada com um copo de vinho tinto. E soube-me muito bem! Os ruidos da festa estavam num volume aceitável, quando se vai para aquela zona da casa. Adoro aquele cantinho. Disse que almocei e eram já umas seis ou sete da tarde, porque não pude comer antes. O trabalho foi tanto que nem ao WC fui.
Só uma das visitas se aproximou de mim quando estava na cozinha e falou comigo. Pressenti de imediato que seria a pessoa que vinha para cá morar - e estava certa. Ela logo me disse que seria ela a ocupar o quarto que vai ser vago pela rapariga jovem que não me cumprimenta quando entra num cómodo onde me encontro.
Pareceu-me uma pessoa de bem e só posso esperar que o seja. A pesar de ser outra Italiana - o que significa que as conversas nesta casa vão continuar a se manter nessa língua, penso que vai ser uma troca para o melhor. A rapariga que vai embora nunca foi acolhedora. Pelo contrário. Desde que entrei nesta casa (e ela só entrou uma semana antes de mim) não exibiu comportamentos de pessoa acolhedora. Pelo contrário. Não me fala quando entra na sala e me encontro nela, quando me cruzo com ela no corredor e vou para cumprimentar, vira as costas ou quando é ela que aparece quando estou a passar, não me diz nada. Tenho cá para mim que, pelas costas, não hesita se puder me deixar mal vista.
Ela faz parte do "casal" e esse casal tem comportamentos esquisitos. Fiz um teste antes de ontem. Ao invés de ir para o quarto e descansar, fiquei pela sala até quase às 8 da noite. Quis ver se eles se iam reunir como habitualmente naquele espaço ou se, por eu ali estar, ia cada qual para o seu quarto. Durante muito tempo, mantiveram-se nos quartos. Eventualmente uma desceu e começou a cozinhar. Mas o casalinho, esse, manteve-se de portas fechadas, a ziguezaguear por entre os dois quartos que lhes pertencem, um no andar de cima, outro no de baixo. Nunca entendi como é possível ficar uma hora nisso mas, esse é um assunto à parte. Eventualmente, sentindo-se "apoiados" pela presença dos restantes, entraram na sala quando eu ia a sair. E o convívio entre eles deu-se naturalmente daí a diante.
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Não sei quando a festa terminou. Adormeci que nem uma pedra. Não sei se alguém ficou cá a dormir ou se todos foram embora. Nessa manhã despertei cedo e apeteceu-me de imediato começar a preparar o peixe para assar. Desci à cozinha, pus legumes a cozer. Descasquei cebola. Aos poucos, fui preparando o almoço.
Numa dessas andanças reparo no quadro a giz, onde tenho conseguido que fique apenas um desenho humorístico. A histérica decidiu deixar dois recados escritos: "eu amo os meus vizinhos" - uma forma de me provocar, ao mesmo tempo que tenta garantir mais convites para entrar nesta casa. O outro apenas dizia: "(nome) loves you!" - o que pode ser interpretado como "eu amo-te" ou eu "amo-vos". Qual a interpretação? Deixou ali o nome de propósito, isso nota-se. O intento bem pode ser impor-se a mim como impor-se ao rapaz. Como se não fosse suficiente referir-se como «vizinha» no escrito anterior para se identificar. A língua inglesa não especifica o(s) destinatário(s) na frase "I love you" mas a ter em conta o espanto do rapaz quando se deparou com aquele dizer, penso que ele interpretou aquilo como uma mensagem directa a ele.
O que pode bem ter sido.
Vários coelhos numa mensagem só... não fosse ela dada a deixar escritos indirectos para atingir certos fins.
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Não deixei que me afectasse. Ela colocou ali o nome dela, impondo-o aos meus olhos, como uma provocação mesquinha. Uma forma indirecta de invadir a casa mesmo quando não cá está. Ao mesmo tempo que seduz os restantes para se tornar uma presença constante. O que poderia fazer para a remover dali? Não me incomodei se ali ficasse. Não ia deixar me afectar por tamanha infantilidade. É só um nome num quadro. Por mais que ela invada esta casa e tente que a sua presença seja regular, quem cá vive sou eu e ela é visita ocasional. Pelo menos por enquanto.
Na casa onde vive ela é rainha. Manipula as situações e manda em todos, que fazem exatamente o que ela quer. Ela faz tudo o que lhe apetece, sem respeitar ninguém. Que fique por lá.
Penso que será apenas uma questão de tempo até o rapaz se cansar e a aparente simpatia e beleza que ela não possui senão como máscara, acabe por se tornar visível.
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Após cozinhar, sobrou-me muita comida. Pensei de imediato em partilhá-la com os restantes. Mas teria de esperar que entrassem em casa para lha oferecer. Foi então que se fez luz. Porque não deixar um recado escrito no quadro?
Foi o que fiz. A esponja passou por cima das mensagens de amor e do nome da intrusa. E tudo voltou ao normal. Até a próxima investida... porque ela não vai desistir.