quinta-feira, 28 de março de 2019

Um trabalho de lazer e a memória celular


A agulha penetrava pelo tecido e as mãos repetiam um gesto que subitamente entendi que era adquirido pelos genes. Fosse com a mão direita, ou com a esquerda, lá estava eu a alinhavar o edredon após o cortar em pedaços menores.

O que percebi foi que nós somos o conjunto de todos os que nos antecederam. Não somos somente fruto da época onde calhamos e do que nos rodeia. Carregamos sempre algo transmitido nos genes - e não falo apenas de doenças. Falo de formas de pensar, agir, temperamento... 


Um documentário que vi recentemente - três idênticos desconhecidos - revelou que existiu um projecto nos anos 60 que visava estudar gémeos separados à nascença, colocando-os em ambientes distintos: classe alta, média e pobre. Três desses bebés encontraram-se por acaso aos 19 anos. Foi um tema mediático, encarado como algo divertido, fantástico e engraçado. Mas por detrás do que lhes aconteceu como órfãos, estava um intento: um estudo sociológico sobre aquilo que somos: iriam os gémeos demonstrar características em comum ou iriam distinguir-se de formas diferentes conforme o meio em que foram inseridos?

O estudo nunca viu a luz do dia mas a determinada altura uma das que sabia que o mesmo estava a decorrer, disse: "Não é bom, pois não? Nós gostamos de pensar que temos algum controlo sobre aquilo que somos e o que fazemos. Se a hereditariedade for mais forte e não importa o que alteremos então qual é o propósito?".

Nós somos sim um misto de tudo. Mas agora, enquanto alinhavava com linha e agulha um pedaço de tecido, senti que aquele gesto nem era meu. Foi-me "colocado" na memória celular por gerações e gerações de mulheres. Essas sim, conhecedoras de tudo na arte da costura, do remendo, da transformação. 

Não posso dizer que aprendi a costurar, porque não é verdade. Nunca tive aulas. Minha mãe deu-me uma agulha e linha, mostrou-me como a enfiar no buraco de agulha (coisa que até hoje faço com a maior das facilidades no mais pequeno buraquinho enfia-se a linha, quase sempre à primeira). Pelos 11 anos estava a fazer vestidos para a única boneca Barbie que tive na vida. E já então, com essa idade, algo nessa prática vinha dos genes. Falta-me conhecimentos, falta-me técnica mas o trabalho é feito. Com gestos transmitidos por indefinidas mulheres da minha linhagem que os reproduziram incontaveis vezes, sentindo orgulho e satisfação em poder ajudar a família e os necessitados com essa sua habilidade. Sinto que outrora havia prazer em dar nova vida a algo que de outro modo não teria serventia. 



A decisão de fazer isso ao edredon de casal que tinha na cama de solteiro foi tomada há um ano. E finalmente pus mãos à obra. Aqui vêm-se muitos a ser descartados, pois esta é uma cidade de  trabalho sazonal cheia de indivíduos a cá trabalhar por curto tempo. As pessoas estão em constante mudança de casa, abandonando o que não lhes é conveniente transportar. São centenas os edredons que vão para o lixo, novos que são comprados... E não me parece que sejam feitos de um material reciclável. Sabia que, assim que o Inverno nos abandonasse, ia querer transformá-lo, dar-lhe outra vida. Nem que fosse na forma de almofadas. 

Decidi forrar a capa do colchão com parte dele, assim seria fácil enfiá-lo na máquina e o lavar. Além de dar mais conforto lombar e protecção de formação de odores. O edredon mal chegou "vivo" aos dias de hoje após a última tentativa que fiz para o lavar à mão, o ano passado. Já estava todo rompido e com forro a aparecer por todos os lados. O tecido ficou frágil depois da lavagem, fácil de rasgar. 

A mão que alinhavava não era só a minha

Teria sido muito mais fácil deitar fora (não, por acaso não teria sido porque deitar coisas fora não é uma ideia que combine muito com o meu ser). E não é por ser sovina, é mesmo algo intrínseco, algo de alma criativa e questionadora. Não há coisa que não olhe que não ache que tem utilidade. Acredito que tudo se re-aproveita e não existem bons motivos para deixar um produto contaminar o ambiente e ser apenas lixo. Mais uma vez, parte deste sentir acho que é hereditário, vem dos meus antepassados. Antigamente não se desperdiçavam coisas, nada era considerado lixo. Se de tripas fazem chouriços e de merda se faz adubo, de facto não faz sentido existir desperdício do que quer que seja. A natureza providencia tudo e assegura-se que tudo o que providencia recicla-se. Não há muitas gerações, tanto ricos como pobres, sabiam que tudo tinha uma utilidade. Para mim este é o conceito que faz sentido. Algumas vezes sou criticada, chego mesmo a ser ridicularizada, mas acho que isso só acontece por ter nascido numa era em que o "aceitável" é considerar tudo descartável e o socialmente correto é correr às lojas compras coisas novas. 

Não dei conta do tempo passar. Calculo ter ficado quatro horas de volta do alinhamento, do corte, e das medidas. Tanto tempo naquilo e o meu corpo não se sentiu cansado, a minha vista que teve de afunilar a cada espetada de agulha, não se sente cansada. Foi um trabalho laborioso mas... de prazer. Tarefa terminada!

Acho que até isso, essa satisfação e ausência de cansaço, deveu-se a sensações vividas pelos que me antecederam. De alguma forma, consigo-as sentir também, ao executar algo semelhante. 

Viram nas fotos? Nada de especial, não é mesmo? Contudo, aprazível.




3 comentários:

  1. Acho muito bonito.
    Simples e bonito.
    Bfds

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  2. Trabalhar com as mãos nos elevam a um patamar maior! Uma intensa satisfação em ver a coisa pronta e dizer: "eu fiz!" Parabéns! Beijos

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  3. Eu entendo esse prazer e acho que nasci com essa aptidão, de fazer coisas. Herdei do meu pai e transmiti ao meu filho. Não tenho qualquer dúvida.

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