segunda-feira, 9 de maio de 2016

Um percurso acidentado - a realidade versus a ilusão

Quando era mais jovem e ainda estudava, respondi a alguns anúncios de emprego compatíveis com o estudo. Por muito que me candidatasse, era raro ser chamada. Fiquei com a sensação que o mundo do emprego para estudantes não era tão acessível assim. Estava sobrelotado por centenas de estudantes com o mesmo intuito. Ao contrário de grande maioria de outros na minha situação, contentava-me com «qualquer coisa», sendo essa coisa no sector terciário.  As funções geralmente ocupadas por estudantes eram os part-times em caixas de supermercado. Assim sendo, candidatei-me. Mas nunca sequer fui chamada a uma entrevista.

A primeira candidatura para a qual me chamaram foi já através de uma dessas pragas empresas de recursos humanos (trabalho temporário). Precisavam de alguém para trabalhar ao balcão de uma loja de telecomunicações. Fui a uma reunião conjunta, junto com uns outros 20 candidatos, fizeram as entrevistas, os testes, as conversas e como a posição era só uma, só iam selecionar UM candidato. Mandaram-nos todos para casa, dizendo que, se fossemos o escolhido, iriam contactar-nos.

O telefone tocou dando-me a boa notícia e a minha felicidade foi intensa e vibrante. Saltei feito um coelhinho e não podia estar a sentir mais satisfação comigo mesma. A função implicava formação e, como existiam outras filiais da empresa, essa formação era partilhada com outros candidatos a outras filiais.


Quando cheguei à formação, logo reconheci um rosto. Era uma colega de curso. Ela tinha sido recrutada por outra agência, junto com uma amiga. As duas não passaram por testes, não fizeram entrevistas. Apenas foram as que responderam ao anúncio no último dia de prazo e a empresa apressou-as a enviá-las para ali. Pareciam baratas-tontas, sem noção do que lhes era esperado. Estávamos todas, como é obvio, a concorrer à única vaga disponível.

Eu me conheço... Sei que a maior parte das vezes pareço não ter fibra e ser "mole", por ser bem intencionada, paciente e educada no trato. Mas é exatamente por ter boa índole que sou forte. A empresa procurava candidatos que soubessem ser agressivos. Queriam jovens mulheres, que seduzissem pela beleza e juventude, só porque isso já é uma forma de "desarmar" o cliente quando este entra zangado na loja. Mas queriam-nas "más", hábeis na língua, com capacidades de persuasão que as fizessem ficar "por cima" numa argumentação. Capazes, inclusive, de meter uma subtil ofensa entre o atendimento ao cliente "difícil". (leia-se que vai reclamar). 

Claro que, não nos disseram isso assim. Eu é que simplesmente o percebi de caras. Agora, se os outros percebem que eu percebo, já é outra história. 

Quando apresentada a cenários assim, o meu lado doce evidencia-se mais. Durante os testes de formação, num dos quais se simulava o atendimento ao cliente, a agressividade era um requisito de maior importância. Tinha-se mesmo de maltratar. No meu momento confidenciei: "coitado!" - e esse sinal de compaixão foi decisivo para a minha exclusão.

A colega ficou com a vaga. Não que tivesse demonstrado melhores capacidades para o atendimento. Mas revelou a indiferença e agressividade que ali tanto se valorizava, alguma impaciência e, também, penso que terá acabado por revelar que os estudos ficariam em segundo lugar. Coisa que não estava nos meus planos. Eu me dedicaria aos dois com igual interesse. Assim que ela conseguiu a posição, nunca mais foi vista na faculdade. Desistiu oficialmente passados uns meses.

Andam tantos a se candidatar ao ensino superior público, a desejar ser colocados sem conseguirem, para outros terem essa sorte só para ao fim de uns meses desistirem...

Continuei a candidatar-me a empregos que via afixados em placares mas não era chamada. Sem ser o trabalho de dia em cafés ou supermercados, a maior oferta era trabalhar na noite, em bares, a servir bebidas ou o que mais que fosse. Esses nem considerei, por não terem nada a ver comigo, embora não sentisse preconceito para com a função ou os ambientes. Simplesmente não me via a gostar de o fazer, pois não me dava bem com música alta e entendia zero de bebidas. Hoje percebo que é exatamente por isso que se deve tentar.

Uma vez em conversa com um casal de idosos que tinham uma loja na qual engracei com um objecto que comprei com as minhas economias, confidenciei que queria encontrar um part-time e eles, com aquele jeito próprio da geração mais velha, escutaram-no já a querer ajudar. E sugeriram os bares. "Não é tão perigoso quanto se diz e até se ganha algum dinheiro" - disseram. 

Achei bonito a ausência de preconceito daquela geração para um estilo de vida com o qual também não partilhavam afinidades. Após reflectirem, eles só viram essa alternativa. Achei carinhoso o gesto.

Entretanto uma amiga que já tinha emprego fixo antes de começar a estudar, insistiu que, para obter um part-time, talvez até num escritório - já que para outros sítios não estava a ter sorte, devia procurar o Centro de Emprego. Porque lá é que as empresas iam para procurar candidatos, porque a oferta era mais diversificada, porque uma amiga encontrou emprego através deles, porque existiam empregos de férias - outro que eu sempre queria. E lá fui. O meu primeiro contacto com o inútil do Centro de Emprego!

Lá fui, cheia de esperança, a achar que aquilo ia dar realmente resultado. Falei com uma pessoa, expliquei os meus intentos, preenchi uma ficha e fui informada pelo centro que enviariam-me um postal para a morada, dizendo onde comparecer para uma entrevista. E que, se por acaso faltasse, deixava de estar inscrita.

Quando chegou o primeiro postal, toda feliz lá fui à entrevista. A primeira coisa que o homem que me está a entrevistar diz é que aquilo era uma formalidade que a empresa era obrigada a seguir mas que já tinham escolhido a pessoa para a posição. Apenas tinham de passar por aquele processo pelo centro de emprego, pois eram financiados, parte do salário era pago pelo centro e tinham de seguir as regras.


Lol. Saí dali a pensar se ele entendeu a gravidade do que acabara de me confidenciar. Mas nada fiz. E esse, hoje percebo, tem sido o meu mal. Detectar situações assim e continuar, deixando-as para trás, sem fazer uma revolução, um protesto, sem chamar as televisões e revelar o escândalo, a verdade por detrás de tanta ilusão de suposta transparência e oportunidades.

O segundo postal veio, tive de correr para conseguir chegar à entrevista que era dali a meia-hora. Não deu em nada, era uma total vigarice. Mal empregada correria. O terceiro posta também chegou... fora do prazo. Tinha de ter comparecido a uma entrevista num dia que já tinha passado. Dirigi-me então ao centro de emprego para re-afirmar o interesse em manter-me inscrita na base de dados e na procura de um emprego de verão. Uma das funcionárias atendeu-me, mandou-me aguardar que outra pessoa ia falar comigo.

Chega uma mulher que repetidamente se identifica como a DIRETORA DO CENTRO, conduz-me até à sua secretária, manda-me sentar e começa a conversar. O que ela me disse foi isto: "Você está a tirar o lugar a outras pessoas que realmente precisam de emprego" (assumindo que eu não! Mas já irei dissecar este horror que estava a escutar de uma diretora do Centro de Emprego!!!) "Acho que é melhor não voltar a se inscrever porque há pessoas que realmente precisam muito mais de um emprego que a menina, que ainda estuda". E mandou-me embora, com um "boa sorte" talvez, mas firme na sua decisão de me excluir das oportunidades ali disponíveis - pensei eu que disponíveis para qualquer cidadão interessado em trabalhar.

Como estava errada! Como estávamos todos errados.


É ao recordar estes episódios que entendo que uma inteligência pacifista não nos leva longe e que a tal agressividade tem o seu quê de razão de ser. Saí dali escandalizada com o que acabara de ouvir. Fui praticamente coagida a desistir. Praticamente expulsa. Ela nem esperou a minha resposta decisiva, deu-a por mim e mandou-me embora.

Ultrajante. Por ser estudante não tinha direito a recorrer ao centro de Emprego para um emprego de Verão? Isto dito por uma diretora! Por ser estudante era considerada menor, pelos vistos tinha menos direitos que um não-estudante. Porque existiam muitos pais de família desempregados e pessoas em pior situação do que eu - disse-me ela, era injusto "tirar o emprego a essas pessoas". Como se até ali tivesse realmente existido uma oportunidade. Só me enviaram para empresas com necessidades fictícias. E agora que estou a escrever sobre isto, tantos e tantos anos depois - posso afirmar que a experiência de vida e a maturidade faz-me inclusive suspeitar que o envio do envelope foi intencionalmente escolhido de forma a aumentar as chances de não ser encontrado a tempo e assim pudessem anular a inscrição. 

Não contavam é que me dirigisse novamente ao Centro para a renovar. Parece tão rebuscado tanta manipulação para atrapalhar uma única pessoa, mas foi o que me aconteceu. E, quem sabe, terá acontecido a mais alguém. Mas provavelmente, todas se calaram. E isso é um erro. Tem de existir um que ponha o dedo na ferida e desmascare a podridão oculta num exterior em verniz.  

Com este tipo de começo - não podia realmente existir um futuro brilhante pela frente, não é mesmo?

Mas a própria juventude conspira contra a pessoa. A esperança ainda é grande, os sonhos ainda são grandes, o tempo pela frente parece longo e cheio de outras oportunidades.


TODAS as pessoas que estudaram comigo e conseguiram de imediato bons empregos, conseguiram-no por cunhas e indicação de outras pessoas. O importante era ficarem posicionadas num bom emprego, ainda que este nada tivesse a ter com a área de formação  -como realmente foi o caso de todos. 

Isso surpreendeu-me. Para quê se dedicarem anos a uma área para depois abdicarem, desprezarem-na? Porque só tinham interesse num canudo. Num status social. E como tal, é ainda mais importante esse emprego que outro qualquer na área, pois vai direto ao status. 

Uma dessas pessoas que se empregou conseguiu a posição por lamber as botas dos futuros colegas além de trair miseravelmente a melhor amiga que contava ficar com aquele lugar, no qual trabalhava fazia um ano. Foi assim... sem problemas, sem complexos, sem consciência pesada e ainda num estado de soberba, de superioridade, de desprezo pela amiga a quem passou uma boa rasteira. De fininho, pela calada, enquanto a outra lhe confidenciava o quanto esperava ficar contratada no final do ano de trabalho, ela foi lá e zás! Conseguiu o emprego para ela.

Outra colega fazia pouco da função que uma outra tinha desde o início dos estudos. Pois esta era trabalhadora-estudante, tinha família e já trabalhava há algum tempo. Diminuí-a como pessoa, dizendo que esta se fazia de importante, era conflituosa... Mas na realidade era só uma pessoa mais madura com outra experiência de vida, que uma adolescente de 18 anos, mimada pelos pais, está longe de alcançar. Pois mal terminou os estudos foi trabalhar exatamente para o mesmo lugar da outra. Posição que obteve por o pai conhecer alguém e puxar os cordelinhos. E era vê-la transfigurada de miúda para mulher de negócios, tal e qual uma Jackie Kennedy, de vestidinho com saia e casaco a condizer, cabelo impecável, sapato de salto alto, um ar altivo, a distribuir cartões empresariais entre todos. Uma vaidade tremenda. Por ocupar uma posição para a qual não subiu a pulso e na qual ainda não tinha dado provas de eficiência. Mas já lhe dava o status, que era o que realmente valorizava. Ainda por cima o pai ofereceu-lhe de presente de graduação uma casa só para ela. Isso tudo junto subiu-lhe ao nariz e era vê-la a sentir prazer em exibir-se com ares de superioridade mais que outra coisa.  


Estas recordações que brotam na memória agora, servem para nos ensinar coisas. A primeira ideia que gostaria muito de deixar aqui vinculada, é que isto de crise na empregabilidade não é, de todo, coisa de hoje. Nem começou em 2008. Ela sempre existiu. Era como uma bolha que ia arrebentar! Estava a ser ocultada por muitos, durante muito tempo, num sistema corrupto, interesseiro e não centrado para o bem estar dos cidadãos.

As empresas de trabalho temporário não acabaram de chegar, já cá andam à pelo menos duas gerações. Ou mais. Aquela que me contratou ainda agiu pelo "livro", fez as provas, escolheu o melhor candidato. Mas a outra iria ser o exemplo de todas as que se seguiram: O que conta são os números e mesmo só tendo aparecido uma candidata para a função, que levava uma amiga, convenceram a amiga a candidatar-se também. Porquê? Porque ganhavam por cabeça. 

Portanto, há muita coisa suja mas a sujeira vem de hoje...

Neste relato deixo de fora os muitos anúncios de ofertas de emprego que consistiam em vendas em pirâmide, esquemas de time-sharing, oportunidades que se julgavam existir mas nunca existiam. Falcatruas atrás de falcatruas - que é o que mais há hoje em dia e afinal sempre existiu- outra conclusão a que cheguei.

Dá para concluir também que, para se ter um emprego bom ou mesmo razoável, as qualificações pouco importam, a tua vontade de lutar por ele também pode ser de pouca relevância. O melhor continua e continuará sempre a ser a cunha. Algo que me incomodava tanto que jamais cogitei recorrer a ela. Seis anos depois, pensava de forma diferente.

2 comentários:

  1. Texto com grande visão, fundamentação e sobretudo que denota alicerce de maturidade.
    Demonstras indubitavelmente saber "frequentar" a sociedade.

    Gostei muito de ler este texto por ser muito atual e real.

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  2. Uma coisa extremamente irritante é receber o tal postalzinho e o prazo de apresentação no centro de emprego já passou! Enfim, para que mandaram?
    infelizmente para ter um emprego não são precisas qualificações especiais. Basta ter lábia e passar a perna nos outros. Ah e cunhas é fundamental. Sem isso nada feito! Ou seja, andamos anos a estudar para quê?

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