quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Mário Soares


Mário Soares nunca teve papas na língua. Sempre disse o que tinha a dizer sem rodeios ou floreados.
Hoje em dia isso não é nada apreciado na sociedade. Não é só na política, onde todos são fingidos e cuidadosos, mas na sociedade em geral. A hipocrisia é valorizada quando comparada ao genuino, se apresentar o que as pessoas desejam ver, ouvir e sentir.


Bom, estou no momento a ver na RTP Memória aquele que deverá ter sido um debate televisivo mítico, entre os políticos Mário Soares e Álvaro Cunhal. Conheço pouco destes «tempos», pois não era nascida. O debate entre o então líder socialista e o secretário-geral do PCP ocorreu a 6 de novembro de 1975! E admirem-se lá: tem quase 4 horas de duração!

E no entanto, mal o sintonizei, já não me apetecia mudar de canal. Vejo melhor um debate destes do que perco alguns segundos a ver debates coloridos e em belos cenários, com guiões mentais e normas visuais, como aquele que se deu há semanas entre os então candidatos à Assembleia da República.

Este post tem como finalidade abordar algumas questões para além da qualidade e interesse dos debates políticos de há 40 anos e os de agora. Quero também falar do que mudou na sociedade e da forma como esta encara uma mesma pessoa (Mário Soares e Álvaro Cunhal).


Em 40 anos não me parece que o Mário Soares alguma vez tenha mudado a forma de ser ou de se expressar. Tem sido fiel a si mesmo, sem mudar conforme as conveniências (o que julgo ser uma qualidade, em princípio). No entanto, em 40 anos, mudou numa coisa: envelheceu.


E por ter envelhecido, leio comentários deixados no facebook aquando o homem visitou um amigo na cadeia que são verdadeiros crimes. Apelidam-no de "velho caquético" para pior. Não usam o seu nome para lhe fazer referência, nem a função que desempenhou, preferem apelidá-lo de "débil mental". Fazem montagens difamatórias em photoshop, como aquela do seu rosto num obeso porco, chamam-no de "múmia", "jurássico" e desejam que morra.

Com isto magoam todos os que rodeiam a figura e lhe querem bem, como a família, a respeitada esposa, filhos e netos. Esta falta de educação e respeito social sempre me deixou em estado de aflição. Esta vontade de maldizer as figuras públicas já de si é pavorosa. Mas esperar que uma pessoa chegue à terceira idade e apareça fisicamente debilitado para o achincalhar é de gentinha que não vale nada. Atacar uma pessoa só e exclusivamente porque ela é VELHA. Como se as pessoas envelhecessem por desleixo e tal «doença» não estivesse aqui a prometer chegar a todos nós. Até parece que ser-se velho e ser-se figura pública, dá legitimidade ao povo para praticar um achincalhamento deste calibre. E se o "velho" decidir não ficar parado, continuar a ter uma opinião, pronto: então sofrerá ataques sem dó ou piedade. Uma prática de bulling que não é ainda apontada, mas existe.


E o pior é que as pessoas que cometem estas atrocidades não têm noção alguma do que estão a fazer. Pensam que "não tem mal", passam este tipo de má formação aos filhos e assim se cria uma sociedade doente nos alicerces. E depois estas mesmas pessoas admiram-se que a sociedade priveligie a beleza e a juventude. Ou não respeite os idosos. Esta gente que pratica bulling cibernético por uma pessoa ser idosa esquece que o destino pode reservar-lhe algo parecido. Não tem lógica o homem não morrer jovem e por isso ser achincalhado!


Álvaro Cunhal, o outro protagonista neste debate que ainda estou a ouvir, não me parece estar a ter um tão bom desempenho retórico. Algumas coisas que diz não me parecem ter recebido grande simpatia. Conheço pouco da história de Álvaro Cunhal, que faleceu há 10 anos. Mas sei que foi uma "figura". Já cheguei à idade adulta ouvindo referências muito respeitosas a seu respeito. Ficou na história da política do país e foi classificado como uma figura MÍTICA do panorama político, em particular pelo partido comunista. Dele só soube que era uma "grande figura", respeitada e colocada num patamar superior. Do pouco que o vi na TV quando ainda estava vivo, falava com poucas palavras - o oposto do que estou a ouvir agora. Mantinha-se um pouco «à parte» das confusões, mas era "hateado" como uma bandeira partidária. O que só contribuiu para que mantivesse uma áurea de mistério e de miticismo. Morreu, em 2005, com 91 anos.

Que sorte teve ele, em ter nascido mais cedo e ter morrido com mais idade do que aquela que o Mário Soares tem hoje! Porque faleceu numa altura em que o achincalhamento social não tinha ainda ganho tanta projecção. O facebook tinha sido FUNDADO a 4 de Fevereiro de 2004 e Álvaro Cunhal faleceu a 13 de Junho de 2005. Não viveu na época da internet "mais veloz", dos plasmas, tablets e dos telemóveis 3G. E com isso, não teve «tempo» para envelhecer diante dos olhos do Grande Público que tem um teclado debaixo dos dedos e que certamente o iria achincalhar por ser uma pessoa que envelheceu e "ousa" emitir opiniões.

Sabem uma coisa? Sempre me perguntei porque é que pessoas que trabalharam com grandes nomes das artes e ainda estão vivas, porquê não veem elas a público contar um pouco aquilo que viveram? Na primeira pessoa, contar como era a vida «naquele tempo», na década de 40, 50... Quem eram, de facto, as pessoas de quem hoje só conhecemos uma «imagem» ou uma «reputação que prevalece» como oficial.

Noutro dia vi na RTP um filme com uma interpretação espetacular, sublime do ator Anthony Hopkins.  Nunca antes tinha visto alguém imitar tão na perfeição e com aparente falta de esforço a figura que foi Alfred Hitchcock (cujas séries televisivas que apresentava tive o prazer de ver em criança). Hopkins conseguiu reproduzir na perfeição os maneirismos, o tom da voz (dificílimo), a forma de pronunciar as palavras e até fisicamente a figura que foi Hitchcook.

Contudo, fica a dúvida: quem foi realmente Alfred Hitchcock? O que separa a realidade do mito? A sua reputação de diretor implacável, torturoso e obcecado pelas suas atrizes principais, têm mesmo razão de ser? Até que ponto? 

Ninguém está vivo para contar, certo? Errado! Há sempre alguém que ainda é vivo... Mas não o será por muito mais tempo. E estes casos têm se repetido no que respeita a pessoas que conheceram figuras míticas das artes ou da sociedade em geral. Pensamos que já não "sobrou ninguém" porque são todos falecidos, mas tal não é verdade. Então, porque não falam? 


Pesquisei pelo nome da atriz que Hitchcock pretendia contratar para interpretar a protagonista do filme Psico: Vera Miles. Como a atriz engravidou, ele a dispensou e dizem que passou a tratá-la muito mal. Queria transformá-la na sua estrela pessoal. E ela, afinal, tinha marido e relembrou-o disso ao aparecer grávida (do segundo filho e esposo!). Vera é viva. E recusa-se a falar da sua vida naquele tempo. Dizem que a celebridade nunca foi o seu objectivo. Sempre quis ser uma atriz respeitada e não uma estrela. Mas ela não é a única ex-atriz coquete de Hitchchock que vive. Eva Marie Saint, que interpretou a protagonista do filme Intriga Internacional também cá está. Bolas! Até Olivia De Havilland (99 anos) que em 1939 interpretou Melanie em "E Tudo o Vento Levou" está viva! E estes são apenas três exemplos de grandes mulheres que um dia maravilharam multidões no grande ecrã, que ainda respiram e têm memórias. Contudo, são pacatas e  viveram as últimas décadas praticamente como reclusas.


Da forma como a sociedade está, agora entendo porquê. Estão muito velhas e a sociedade prefere recordar a beleza de uma mulher jovem a ver uma idosa sem dentes ou cabelo. Ainda que se mantenha uma sociedade deslumbrada por tudo o que tenha sido sucesso e seja vintage (não velho, atenção!), a sociedade também anda muito cruel. Uma Brigitte Bardot jovem é idolatrada, mas uma idosa é ridicularizada por estar velha e não ser atraente e pela sua preocupação imensa para com os animais domésticos ou, simplesmente, permanece recordada parada no tempo, como uma eterna sex symbol. 

Bom, me desculpe quem tenha lido TUDO ISTO  porque é muito texto, mas apeteceu-me abordar todos estes temas com base neste «estímulo» do debate televisivo de há 40 anos. Podem ser muitas palavras, mas acho que têm fundamento. 

Álvaro Cunhal faleceu com 91 anos e sua imagem foi respeitada. Mário Soares pode até sofrer o mesmo destino e vir a falecer com a mesma idade (faltam meses para chegar aos 91). Mas já não terá a sorte de ter vivido numa época em que as redes sociais mal existiam. E por isso tem sentido na pele o que é existir uma nova forma de se ser insultado. Como político e ex-perseguido deve ter criado uma carapaça bem dura a respeito de ofensas verbais. Mas as redes sociais facilitaram bastante as mesmas e as espalham de uma forma muito cruel e com uma rapidez assustadora. Um veículo excelente para mentiras e propaganda. 

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