Soltei um grito com entoação de esquilo surpreendido quando afastei os cortinados da janela e avistei o que estava do lado de fora.
Um manto branco, a ficar cada vez mais claro a cada floco de neve que caia.
Uma visão que deixa qualquer um bem disposto e animado. Um extremo contraste do que parece ser o clima em casa. Cruzei-me com a M. quando ia para subir as escadas e esta estava a sair do quarto. Olho-a e pergunto se vai descer. Nao me fala, vira-se e Segura no corredor ate o WC. Ainda estava no fundo das escadas e se ela fosse descer, dava um passo atras para que descesse e depois de passar por mim eu subia. Acho que faria isto mesmo que nao existisse a necessidade de distancia social.
A M. esta de trombas desde ontem, quando a vi. Queixou-se do rapaz. Pelos vistos desentenderam-se. E o clima esta estranho. Cada vez mais chato. Foi o meu unico dia de folga - o sabado. E o clima que me proporcionam e sempre este. Mas so se eu deixar! Ou me envolver muito. Nao pretendo me desgastar.
Ela sabe vir ter comigo para contar tudo o que a aborrece nos colegas da casa. E eu a escuto. Contudo ela nao oferece a mesma postura caso a situacao seja inversa. Faz mais o genero que sente que nao e nada com ela e nao se quer meter.
Felizmente nunca a aborreci com os meus problemas com o rapaz. Ela esta a par destes, claro. Mas so possui a versao dele. Por vezes parece-me que, quando se dao bem, e so sobre isso que falam e gostam de falar.
Nao e situacao que me aborreca tanto quanto no passado. Quando vim para esta casa pedi para qur viessem conversar comigo se tivessem algum problema para me dizer. Deixei isso claro, na primeira vez que intui (equivocadamente) uma situacao de fofoca. E das vezes que os escutei a falar na cozinha fazendo referencias a uma "ela", se suspeitasse que era eu, aparecia na cozinha e sem agressividade mas com determinação, perguntava se estavam a falar de algo que eu devesse saber. Nao aconteceu muitas vezes e nao pretendo agir assim novamente. Estou so a deixar claro o que pretendo e espero. Nao vou mais permitir situacoes de bully incessante como foi na outra casa. Se o quiseres fazer, entao nao me ralo. Que se afoguem em maledicencia que a mim nao me faz mais especie. Apenas quis deixar claro que podem falar de mim na minha cara. E o que eu farei com todos. As minhas "regras" estao definidas.
Há tres semanas fui eu que passei por uma situacao deaagradavel. Estava a regressar ao interior da casa apos ter aberto a porta para colocar plasticos no contentor de reciclagem e ao faze-lo o rapaz, que sai do quarto, comeca a dizer que eu estava a espia-lo. E a perguntar o que se passava, se eu o espiava pela janela como espiava o outro rapaz e a dizer-me que estava sempre a sentir-se observado. O absurdo da situacao e a paranoia dele fez-me perceber que o silencio e a melhor resposta.
So lhe disse, apos a primeira frase dele e fazendo um instante de pausa, se nao achava que a situacao era inversa. Queixei-me aqui que ele estava sempre a aparecer mal os meus pes entravam na cozinha. Figindo ter algo para fazer mas so para espionar. Optei por ignorar.
Como todos com tendencia para a paranóia, ele inverteu os papeis e acusou-me de exibir um comportamento que e dele.
Ele continuou a dizer esses disparates enquanto eu terminava de tirar a roupa que coloquei a lavar na maquina. So tinha descido do quarto para despejar a embalagem de aluminio que tinha acabado de esvaziar e colectar a roupa pois esperava a maquina terminar o ciclo de lavagem para finalmente poder ir dormir. O dia estava apenas a comecar para os da casa, mas para mim que tinha terminado oito horas de trabalho noturno, tomado um duche, cozinhado e colocado roupa a lavar, oito da manhã significa hora de ir deitar.
Ele continuou a dizer disparates sem sentido para os quais ja nao tenho disposicao para procurar entendimento. É a cabeca dele que tem problemas. Revela uma fixação doente de que todos falam de si, o observam, e tudo o que fazem e em funcao dele. Nao se pode ter uma conversa na cozinha. Se ele, que esta no quarto, escutar pessoas a conversar, em nao mais que dois minutos sai e aparece, fingindo precisar ir fumar e usando a porta da cozinha, ao inves da da entrada que fica perto do seu quarto. Tambem deu para abrir a janela na cozinha - que antes queria fechada. Porque com ela aberta consegue ficar do lado de fora a escutar as conversas que se dao dentro.
Paranoia.
Eu, que ja vivi numa situacao em que me vi preocupada com o falarem de mim assim que virava as costas, chegando ao ponto de usar gravador e a sofrer o tempo todo por nao entender o que levou aquilo quando nunca fiz nada para o merecer e sempre fui atenciosa, nao vou mais enveredar por esses caminhos.
Fiquei apenas com um hábito: ter quase sempre o gravador ligado. Porque nunca se sabe quando um disparate pode surgir. Ate nos dias mais bonitos pode se dar uma explosão. Nao tinha o gravador comigo quando ele teve esta erupção. Nao esperava. Contava em descer, colocar a reciclagem la fora, apanhar a roupa e subir. Para finalmente ter o que me apetecia: descanso.
Nao ia levar mais que três minutos. Estava tao serena e bem disposta, a pesar de cansada. Nao imaginei que nesses tres minutos tudo ia mudar. Com todos ainda nos seus quartos sem terem saido, contava em poder apanhar a roupa sem incorrer incidentes. Nem tinha o TM comigo. Mas quando tenho, e frequente ter o gravador ligado. E um habito que apanhei e nem penso muito nisso. E quase automatico, como puxar o autoclismo depois de usar a retrete.
Ele insistiu e tudo o que dizia era um disparate sem nexo. Enquanto puxava a roupa para fora da maquina, ansiosa para a tirar toda e virat as Costas aquela desgradavel situacao, so lhe disse que nao entendia nada do que dizia porque nao estava a fazer qualquer sentido. Terminei de tirar a roupa e nao disse mais nada. Sai da cozinha e fui para o quarto, sentindo-me indignada por ele me ter tirado o meu direito ao sossego e descanso. Roubou-me a paz de espirito e felicidade que consegui reunir, para me presentear com conflitos. Nao quero. Nada fiz para os merecer e dispenso-os.
Foi nesta ocasiao que desbafei, pela primeira vez, com a M. Ate entao nunca lhe tinha falado dos meus problemas com ele, a pesar dela saber muito bem que nao nos davamos. Nesse periodo de quatro meses em que me mantive em silencio, escutei as suas criticas sobre ele sem nunca lhes acrescentar as minhas.
Achei que ele estava a exibir preocupantes sinais de paranóia. Eu nao podia estar menos preocupada com ele ou a vida dele. Depois da outra casa algo em mim mudou. Nao estou mais sempre disponivel nem disposta a me sujeitar ao que me sujeitei. Nao preciso mais de compreender porque as pessoas agem de certa forma sem aparente causa ou provocacao. Ignoro-as e sigo o meu caminho o melhor que conseguir.
Sabem quem me ajudou a ganhar esta frieza?
Ele.
Dizem que todas as pessoas que cruzam o nosso caminho nao e por acaso. Nao sei se tal e verdade. Se for, o destino esta em falta comigo, pois sinto que me fazem falta pessoas com as quais posso sentir mais afinidades, algumas delas adormecidas a tanto tempo por falta de quem as alimente.
Nem mesmo as tròmbas da M. conseguiram envenenar esta visao linda que e ver a neve a cair pela janela do quarto.