sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Revi o filme "Filadélfia", no qual Tom Hanks desempenha o papel de um advogado demitido quando os seus superiores percebem que ele tem SIDA. Continuo a achar que o óscar devia ter ido para António Banderas, que entrega um desempenho intenso, credível, com timming, mesmo aparecendo pouco no seu papel coadjuvante e tendo poucas falas. Na altura Banderas "acabara" de chegar a Hollywood, era uma aposta sem créditos solidificados e aquele papel deve ter-lhe sabido a rebuçado. Ele ganhou notoriedade num filme espanhol de Pedro Almodóvar e ainda tentava conquistar o difícil mercado da terceira arte de Hollywood. A prova é que o seu nome aparece somente na 21ª posição dos créditos. É para que se perceba o quanto ele ainda estava longe de ser um astro. Esse estatuto pertencia a Tom Hanks e a Denzel Washinton.

Mas o filme continua praticamente perfeito. Continuo a adorar o seu final, com todos os amigos e família reunidos num convívio após o funeral. Entre tantos adultos com o aperto do luto no coração a tentar confraternizar alegremente, a vida renova-se e relembra a todos que tudo é um ciclo, através da presença de bebés de colo que simbolizam esperança e crianças, algumas mais crescidas a correr por toda a parte como que abstraídas do sofrimento e dor alheios e entregues às suas alegrias infantis. Todas as personagens têm ali uma história autêntica para relatar. E quando falo de todas, é mesmo todas: desde os médicos que primeiro tentam despistar a doença, à família de "Tom", ao bibliotecário que lhe pergunta se quer ir para uma sala privada de consulta, ao estudante que esbarra com "Denzel" na farmácia e o convida para um copo implicando uma atracção física. Enquanto a trama se desenvolve em torno da personagem principal aproveitam para colocar pessoas realmente afectadas pela doença pelo meio da história, como figurantes. E é ai que se percebe que por mais maquilhagem que Tom Hanks tenha levado e por mais que tenha emagrecido não conseguiu remover a sua condição física saudável do retrato do aspecto físico de alguém em estado de saúde terminal. Com a tecnologia de hoje isso seria perturbadoramente possível, devido aos efeitos CGI - que conseguem envelhecer, "matar" e rejuvenescer pessoas de um instante para o outro. Mas em 1993, quando o filme foi feito, tinham mesmo de recorrer à maquilhagem e a truques de iluminação. Acho que aqui o filme falha, porque vejo um Tom Hanks com uma tez saudável, bochechas roliças e ar energético - apesar do desempenho. Mas pronto, isso é lado técnico do filme. Para o final da história, no leito de morte, Tom consegue estar mais moreno que o latino Banderas! Pelo que isto para mim retira alguma autenticidade ao filme, mas não à história e às suas mensagens. E essa é que vale a pena recordar. Não é só a SIDA que está a ser retratada, mas em particular a SIDA enquanto num portador homossexual. Dois preconceitos reunidos num só, portanto.

Cena de beijo entre casal - feita percebendo-se o incómodo de Tom - parece-me.
Filmada de costas, de forma a não se perceber que o beijo não é dado na boca.
Cena inovadora para a época - ainda existiam tabus a recair
sobre o retrato da intimidade gay no cinema.
O filme ajudou para que a sociedade visse o casal homossexual como outro qualquer.
Banderas entra no filme com muita intensidade dramática
entregando uma prestação devota, apaixonada, dedicada e companheira.
Denota-se em ambas as personagens um passado de descriminação e obstáculos
ultrapassados, sem que existam referências orais, apenas olhares, gestos.
Acredito que hoje o filme valha pelo seu testemunho histórico que retrata uma mentalidade que já passou. E não é formidável que apenas em uma dúzia de anos, a sociedade no seu geral tenha alterado a sua postura em relação a estes dois temas? Agora é gay para cá, gay para lá, bicha tu isto, bicha tu aquilo... na boa e como se privar com alguém gay fosse até uma moda. Ainda que para alguns acredito que ainda possa fazer alguma confusão, a sociedade na sua maioria já não sente assim e tudo é mais às claras, assumido abertamente sem receios, como aliás deve ser.

Lembro bem do que eram os anos 90 e das coisas que não existiam na altura. A começar pelas principais - às quais estou a recorrer agora: o computador e a internet. Portanto, o acesso à informação não era rápido e simples como nos dias de hoje. A informação vinham dos jornais. Que por vezes contavam histórias reais bem injustas e por isso assustadoras sobre contágio e transmissão de SIDA. Era um assunto falado por muitos mas ainda pouco esclarecido. Será que a SIDA podia ser transmitida num cumprimento de mãos, caso estas tivessem uma ferida? O próprio suor - como líquido corporal podia ser o transmissor? Os "gafanhotos" largados por alguém contaminado enquanto fala frente ao rosto de outra pessoa, por serem saliva, iam contaminar? O beijo entre apaixonados podia ser fatal? Ir ao dentista constituía um grande risco caso um paciente anterior fosse portador da doença e o médico não esterilizasse bem os instrumentos e a própria indumentária? 

Uma aurea de receios de uma forma discreta pautava o comportamento de algumas pessoas. No filme vemos isso, quando Denzel Washinton depois de cumprimentar com um aperto de mão "Tom Hanks", este lhe diz que tem SIDA e ele não sabe o que fazer com a mão. E fica obcecado a olhar para a mancha na sua testa e para todos os gestos de "Tom", com receio de contaminação. De seguida vai consultar o médico para ter certezas de que não pode transportar a doença para casa, para a sua bebé. 

Não condeno as pessoas que, assustadas, possam ter atitudes como as de Washington. Afinal, a informação era contraditória, assustadora e escassa. Diziam que não existiam razões para preocupações bastando ter precauções básicas - sendo que as principais era não ter sexo sem a protecção de um preservativo e ter atenção aos comportamentos sexualmente promíscuos. Comportamentos sexuais de risco - como lhes chamavam. Quanto aos que não temiam apanhar a doença através do sexo mas por outras formas, aí é que tudo se tornava mais difuso. Mães temiam pelos seus filhos "não bebas água pelo copo de ninguém" - diziam. Antes disso uma ocasional partilha de um refrigerante, de um talher, não era problema mas agora esse tipo de comportamentos apresentavam um risco, que ninguém queria correr. Temia-se os espirros como sei lá! Alguém com aspecto doente e tosse incessante não era alguém de quem se queria estar ao lado numa sala de espera num hospital. E é compreensível, ainda hoje o mesmo deve acontecer. E "caçavam-se" outros potenciais hábitos susceptíveis de serem prejudiciais, como a falta de rigor de higienizarão aquando as idas a consultórios médicos. Passou-se a dar mais importância à higiene para se garantir que não haviam sérios riscos de contaminação.


Não me vou alongar e se calhar nem vou falar do que ia para falar, mas a respeito deste filme é assim que agora o vejo. É como se o filme tivesse "congelado" uma determinada época. Não só pelo tema central - sida e homossexualidade, mas pelas mentalidades sociais que ali estão retratadas. As anteriores aos anos 90, as das diferentes gerações, géneros e orientações e as mudanças nos anos 90. Mas acima de tudo DESCRIMINAÇÃO é descriminação. E o filme mostra um pouco disso. Não se foca unicamente na orientação sexual, na doença contagiosa, no género, no estatuto, na cor de pele. Tanto negro, branco, velho, novo, homossexual ou heterossexual podem ter uma mentalidade mais limitada e o desconhecerem. A personagem de Denzel Washinton revela isso mesmo. No decorrer da trama Denzel tem a possibilidade de conviver de perto com um mundo que lhe era afastado mas que julgava conhecer sem conhecer. E aprende a sentir as coisas ao invés de as tomar pelo que lhe foi dito e ensinado. 



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