domingo, 26 de maio de 2013

Pais & Filhos - comportamentos que parecem vir no ADN

A vizinha acabou de gritar:
-"Cala-te! Porco!" - diz ela ao filho.

Na realidade, ela está sempre a gritar com os filhos. Principalmente com o rapaz, que deve andar pelos sete anos. Mesmo quando tenta ensinar-lhes algo, ela grita e é rude no vocabulário. Faz ameaças, manda o rapaz se calar, está sempre a gritar "bolas! Merda!".


A minha realidade não era muito diferente da dele quando era pequena. Nem pequena nem adolescente, nem mesmo já grandinha... Pelo que reflicto muito nas sequelas das crianças tratadas desta forma pelos pais. E sei o caminho que aquele rapaz vai trilhar em termos de auto-estima. O quanto anos de gritos incessantes e maus tratos verbais e comportamentais o vão afectar na vida.

Quando era pré-adolescente precisei por um curto período de tempo de explicações para a escola. Meus pais pagavam a um explicador para me ajudar duas vezes por semana. Uma vez lá fui eu e não sei com que cara ia, mas ele perguntou-me o que é que se passava comigo. Por vezes estava bem, outras parecia não estar - diziam-me frequentemente. E depois começou a elogiar os meus pais. Disse-me o quanto eles se preocupavam, o quanto lhes devia estar grata e o quanto era bom ter pais. 

-"Olha para ali bolas! Ré, dó, mi, ré, dó!"
- "Bolás pá! Merda!" - continua a vizinha a gritar ao filho.

O puto já vai naquilo para três horas e ela não pára de lhe gritar. Pelos vistos ele não acerta naquelas três notas lá muito bem e vai ter de ouvir o resto da vida... Não me admiraria que associasse para sempre estas memórias negativas e sofridas ao simples avistar do instrumento. Ao ponto de nem lhe poder colocar a vista em cima. 

Bem, o que é que eu poderia responder a um explicador jovem e independente que perdeu os pais cedo? Nada. Porque se lhe dissesse um desabafo que fosse, lá se ia o ideal que devia estar na sua cabeça de órfão. "Deves estar grata por ter pais" - disse-me ele. 

Sim, eu sabia. Mas nem tudo era um mar de rosas e nem sempre é a criança que está sem a razão. Apesar de tudo, e esse tudo não era pouca coisa, entre os ter e não os ter, preferia ter. Mas a que preço... !! Quase que lhe confidenciei: "Não é bem assim". Mas do que adiantava? A realidade dele era outra. Outra que eu decerto não conhecia também. Deixar que ele sonhasse com os pais carinhosos, afectivos e compreensivos que perdeu cedo, tal como eu, no fundo, fantasiava também. Carênciavamos os dois do mesmo, mudavam as circunstâncias. Ele jamais poderia recuperar os pais e eu tinha os meus. Era diferente. 

Pelo que nem com ele, nem com ninguém, alguma vez desabafei fosse o que fosse sobre os gritos, os maus-tratos constantes, muito presentes entre quatro paredes, diluídos na presença de estranhos. Desabafei com o papel, que ouviu pacientemente uma enxurrada de frases ditas em desabafo e sofrimento, até que um dia decidi que o papel também não devia guardar esses males. Uma vez fiquei mal vista diante de uma pessoa só porque esta achou que não correspondi ao nível de simpatia de meus pais. E tinha-lhes falado, num momento, com secura. Nunca lhe confidenciei que nesse momento o que lhes disse saíu como um grito de dor abafado. É que meus pais estavam a ser muito simpáticos mesmo. Bastante. E subitamente eu percebi que toda a minha vida podia ter sido assim e não foi. Uma dor rápida e profunda como um relâmpago passou pelas células do meu corpo quando o percebi. Contive as lágrimas. Percebi que era uma ESCOLHA. E eles escolheram os gritos. 

Nada disse, deixei que a pessoa ficasse a pensar mal de mim. Tantas vezes protegi meus pais mantendo o silêncio. Quem ficava mal vista era eu. Mas muitas vezes, mal a porta fechava e a visita ficava do lado de fora, recomeçava logo, ali e naquele instante, os maus tratos verbais.

Era como avistar por uns instantes o oásis para depois me atirarem de imediato no inferno calorento do deserto.


Quem vê os meus vizinhos com os filhos a passar na rua, não adivinha a gritaria entre as quatro paredes. Comigo também era assim. Tudo o que as pessoas viam era o que os sentidos básicos conseguiam detectar. Roupas, carro, escola, brinquedos, coisas normais. As pessoas pensam que estas coisas têm cara, roupa esfarrapada, falta de instrução e principalmente, falta de dinheiro. Mas não é assim que acontece.

Não creio, infelizmente, que o meu caso, separado que está em tantos anos da geração deste rapaz meu vizinho, sejam casos pouco habituais. Infelizmente, creio que a maioria das famílias portuguesas carregam no seu ADN este quotidiano ou variantes dele. Acredito que meus pais queriam mesmo dar uma vida melhor aos filhos. E, tal como tanta vez disseram, "dar tudo aquilo que eu não tive". Só que essas coisas eram bens materiais, não bens afectivos. Nesses continuaram a privar um tanto os filhos, quem sabe até se vingando neles. Deram-lhes bens e estudos, que era o que ao crescerem julgavam desejar para si, mas retiraram-lhes liberdade e individualismo. Muitos pais recusam-se a identificar os filhos como indivíduos e esquecem que mais do que mandar, impor, dar ordens e obrigar, há que escutar e, acima de tudo RESPEITAR.

Noutro dia recebi um comentário num blogue em que a pessoa confidenciava que não soube respeitar os pais, os avós nem dar valor às pessoas que a rodeavam. Percebeu que foi uma adolescente rebelde e egoísta. E se arrependia hoje por isso. De alguma forma, gostava de lhe ter dito que era suposto isso ser um pouco assim. Antes assim que ao contrário, pois o contrário era muito pior. Que se deixasse estar sem grandes remorsos, porque eles certamente que souberam entender, ainda que pudessem ficar sentidos. Porque compreendiam os ímpetos da juventude. É diferente quando se está na adolescência. Nem todos os adolescentes têm a cabeça algo "idosa", como foi o meu caso. 

Eu não tenho desses arrependimentos. Com intenção, nunca fiz mal a alguém ou tomei uma má atitude. Estive sempre presente, dei tudo o que tinha de bom para dar aos meus e continuo a dar, ainda que tente aprender um pouco a ser egoísta. Uns já faleceram e eu percebi a sensação nova e estranha que é alguém partir e ficar tudo tranquilo e pacífico. Não me deixaram um arrependimento. Não ficou um pedido de desculpas por fazer, nada que remoesse a alma. Talvez porque não fez parte do meu feito me esquecer que existiam. E eles sabiam disso e o apreciavam. É uma tranquilidade que me pertence e desconhecia até que pudesse não existir, como vejo alguns lamentarem. 

Como já referi, este tipo de tratamento familiar que a vizinha está a transmitir aos filhos parece que está no ADN português. Passa dos pais para a prole. Ténues mutações, talvez, mas a «medula» está sempre lá. Comigo não teria hipótese, isso percebi-o bastante cedo, mas não deixei de o ver a acontecer noutros lugares, com outras pessoas. E agora, com esta vizinha. Por vezes dá vontade de intervir. Assim como o impulso também surge quando vejo alguém a arrastar uma criança pequena pelo braço insultando-a por não se despachar a andar. Ou gritam com elas nos super-mercados, insultando-as chamando-lhes nomes, que, por estarem num super-mercado, não escalam ao que escutam em casa mas que deixam adivinhar. "Tu só me envergonhas! Nunca mais te trago comigo às compras! Está quieta! Olha que ainda levas uma palmada!" - ou então dão a palmada logo ali, para "disciplinar" a criança. Esta chora, claro está. E por chorar ainda apanha mais, porque ao chorar está a embaraçar o adulto e este sente que as atenções e RECRIMINAÇÕES recaem em cima de si. O que pensa que os outros pensam dele é o que o leva espancar novamente a criança. Que chora e lhe gritam para não chorar. Mas se apanhou, queriam que sorrisse?
Se calhar queriam que ficasse como eu aprendi a ficar. Parada, de cara "fechada", braços cruzados, em silêncio e totalmente absorta num sofrimento oculto. E ainda a escutar o quanto é uma criança insuportável, que não pode ir a lado algum, que só traz é vergonha. Porque tudo o que os adultos querem de uma criança é que fique quieta e em silêncio quando outros estão por perto e os podem julgar. Ora, uma criança pode ser difícil de educar - isso não contradigo, mas pelo cansaço dos pais apenas. E por a altura para se portar como a criança que é não ser conveniente, apanha.

Espero que este comportamento tenda a diluir com a passagem das gerações, com a melhoria da instrução e do convívio com outras sociedades e culturas. Mas agora aparece-me aqui esta nova jovem mãe, com seus filhos crianças, a repetir o mesmo. Quanto tempo mais até isto desaparecer? Porque submete ela os filhos a isto? Para se vingar dos seus pais?


Recuando ao explicador órfão, devo explicar que não lhe invejava a situação. Devia ser tão difícil não ter pais! Mas cada um de nós tem a sua ideia do que é ter pais e viver com eles. Os que têm só podem imaginar o que seria viver sem e os que não têm idealizam o que é viver com. Ninguém sabe como vai ser ou poderia ser, até que a situação passe a facto e deixe de ser hipotética. 

Eu sempre imaginei, por exemplo, que um órfão não é necessariamente um coitado - porque fui ensinada que era para os ver assim, embora jamais o conseguisse fazer. Procuro ver o indivíduo, não a sua condição, pelo que não faz sentido para mim dizer que alguém é "mais ou menos" seja o que for. Lá porque a pessoa pode ser órfã, não quer dizer que não seja amada, bem educada, lhe falte quem lhe transmita valores morais e a mune de ferramentas para se erguer por conta própria na vida. Não sei se a pessoa é feliz ou infeliz, se é boa ou má - isso não advém da sua condição. Conheci apenas superficialmente dois rapazes a serem educados pelos avós, sendo que um só tinha uma avó e não tinha realmente os pais. Deviam ter um sentimento estranho, claro, mas nenhum me pareceu desajustado. Decerto que teriam os seus momentos terríveis em que gostariam de levar a vida igual aos dos outros meninos e ter um pai e mãe por perto. Tenho a certeza que ficaram marcados por isso, tal como tanta coisa nos marca nesta vida. Mas quem diz que não têm como receber amor e que este não é bom?  Talvez tenha adquirido esta percepção devido às histórias infantis do meu tempo. Nelas quase todas as personagens principais eram órfãs. Como o Marco, a Heidi nas montanhas, os esquilos ou o Sebastião. Mas eram também crianças ou animais inteligentes, saudáveis, activos e amados por muitos, talvez até por isso. Recebiam caridade, preocupação extra, afecto. Acredito que mais importante do que o grau de parentesco, é o amor que a pessoa tem e sabe dar. 


É estranho, por exemplo, escutar os desabafos de minha mãe sobre episódios mais sofridos da sua infância, que mos relata como se eu nunca os tivesse escutado, e perceber que ela não é capaz de estabelecer os paralelismos com o seu comportamento para comigo. Diz-me "tu não sabes", quando eu sei sim, porque ela fez-me passar pelo mesmo. Podem variar as circunstâncias ou mesmo o resultado final, mas nunca o acto. 

Jamais desejei qualquer mal aos meus pais, pois lá da forma deles, sei que gostam de mim. Apenas não o souberam demonstrar e, o que é pior a meu ver, não me sabem respeitar. Foram pais que, tendo um problema qualquer no trabalho, chegavam a casa e gritavam com a filha. Todos os problemas pessoais entre os dois também vinham parar a mim. Fui basicamente um bode expiatório, não sei se alguma vez o vão admitir. Creio que não. Porque ainda se vêm a eles próprios como vítimas, para poderem se perceber como carrascos.Também não preciso de admissão, eles é que precisam. 

E agora esta vizinha trilha o mesmo caminho. Zangada que está com o mundo, insatisfeita quiçá com a sua vida afectiva e amorosa. Quem paga são os filhos. E mesmo a querer ensinar, lá está ela: "Bolas pá! Merda!" - constantemente a gritar isto aos ouvidos daqueles que pariu. 


2 comentários:

  1. Estou a passar pela mesma situacao.todos os dias k a vizinha chega com os filhos a casa n passam 5 mts e comeca a gritaria.fico revoltado e kero intervir.os miudos devem ter a volta dos 5-6 anos.n sei o k devo fazer.vou la baterlhe a porta e dizer para fazer menos barulho?ameacoa k chamo a policia se ela continuar?

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    1. Isso terá de ser você a avaliar. Mas felicito-o/a por sentir vontade de intervir.
      Tente, se achar que a situação o permite. Se costuma falar com os vizinhos, se essa vizinha parece acessível, se a polícia costuma intervir nessas situações... Faça-o. Quem sabe a mulher precise disso e as crianças, certamente, não merecem crescer no meio de gritaria e palavrões. Chama-se a isso violência doméstica.

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