quinta-feira, 4 de julho de 2019

Falar, calar, comunicar e manguito


Falar ou calar? - Pergunta deixada neste blogue.

Esta questão motivou-me a vir aqui escrever sobre este lado da natureza humana: do falar e do calar.


FALAR:
Na viagem de autocarro ontem de noite, entrou um passageiro com aspecto de morador de rua e lentidão nos movimentos. Comprou bilhete com o motorista e enquanto lentamente colocava o bilhete na carteira  fez um comentário qualquer. 

O motorista parou o veículo, perguntou-lhe se estava bêbado e disse que queria-o fora dali, que recusava-se a transportá-lo. Portanto, ou ele saia, ou o autocarro não andava.

Quase 23h da noite. O autocarro cheio de pessoas ansiosas para chegar a casa. Todas a querer ver o autocarro a mexer. O homem, ficou parado e imóvel no mesmo sítio.  Um outro passageiro de fato e  gravata dirigiu-se a ele de forma autoritária, fazendo o papel que devia ser do motorista e disse com voz muito firme: "saia deste autocarro. O motorista pediu-lhe para sair, ele não vai arrancar com o veículo consigo cá dentro. Todos nós queremos chegar a casa, você já está a fazer-nos perder tempo.". Foi aqui que o homem estranho finalmente falou. E apenas disse: "comprei o meu bilhete quero viajar neste autocarro". Ao que o homem bem vestido retaliou: "Tem de sair deste autocarro agora. Comprou bilhete mas o motorista não o quer transportar. Portanto saia. Simplesmente saia. O motorista disse que podia usar o bilhete no próximo autocarro". E nisto toca no braço do homem estranho, querendo dirigi-lo à porta de saída. "Acalme-se. Não seja violento" - diz o homem-estranho. (aqui não se pode ter qualquer contacto físico, é onde estabelecem o limite, identificam quem toca como a primeira pessoa a iniciar o assédio).  Enquanto este diálogo entre passageiro indesejado e outro passageiro ocorria, o motorista manteve-se calado. E sossegado, no seu cubículo protegido por flexi-glass

O homem bem vestido, que se nota que é culto, inteligente, capaz em todas as suas faculdades físicas e psicológicas, continua o confronto verbal com o homem estranho, a maior parte das vezes mudo e sem reação. Repete-lhe a ordem para sair do autocarro e às tantas diz-lhe: "Quer discutir leis? Pois muito bem. Vamos falar da lei!".

O que achei inapropriado. O homem-estranho estava claramente numa posição de inferioridade e também não me pareceu ter capacidades intelectuais muito desenvolvidas. Nesse instante não gostei da atitude do homem-bem-vestido. Acho que não gostei quase de imediato. Acho bem que fale, que expresse a sua opinião. Mas há um limite entre o falar, o ordenar, o se mostrar e o tirar proveito de uma situação desfavorável para outra pessoa. Ele estava a ser mais confrontacional que a suposta ameaça e a retirar do motorista o dever de impor a autoridade. Este bem que se calou e não impediu ninguém no autocarro de confrontar o homem-estranho

A quietude deste tanto podia dar para a violência súbita, quando para a total incapacidade de reagir. Por isso cabe ao motorista zelar pelo bem-estar de todos os passageiros. Neste país faria todo o sentido se o motorista pedisse ao homem-bem-vestido para não intervir mais, pois já estava a chamar a polícia pelo rádio. Mas o motorista deixou as coisas rolarem. E se o homem-estranho, ao ser tocado, desse para desatar a bater em alguém? Podia ou não o motorista ser responsável já que não fez nada para acalmar os ânimos? 

Não simpatizei muito com a intervenção do homem bem-vestido. Que depois foi reforçada por outro homem bem-vestido que estava sentado ao meu lado. Dois galos de capoeira... contra um homem barbudo, transportando uma mochila de campismo nas costas e segurando um pau de caminhada. Dificilmente os seus movimentos podiam estar soltos para atacar alguém. Mas no caso de um ataque de fúria tudo é possível.

Este homem não falava, não se movia, foi como se tivesse sido apanhado de surpresa. Só então, muito depois, o primeiro passageiro que interviu decidiu entrar pela abordagem mais serena: "Tem algum problema médico? Precisa de tomar alguma medicação?". 

O homem nada dizia e não se movia. Eu é que me movi. Pedi licença para passar, dizendo que ia apanhar o próximo autocarro já que aquele não saia dali. Na realidade, mexi-me para ver se o homem-estranho também se decidia a sair, ao ver outra pessoa abandonar o veículo. E também porque não queria estar ali a presenciar mais aquilo. Sinto-me muito voyerista, embora o meu lado que sempre gostou de registar o quotidiano sentisse uma vontade compulsória para começar a gravar. Hoje em dia todos fazem isso porque existem smartphones, mas eu sinto estes impulsos desde criança, antes mesmo de câmaras de filmar estarem ao alcance do cidadão comum, quanto mais existirem telemóveis ou smartphones. Mas Mas agora que fazer gravações é algo banal e tão criticado, algo que me dava gosto fazer com todos os cuidados e respeito, já não faço com tanta normalidade. Resisto ao impulso.

Basta recordar aquele post onde contei que fui insultada por duas tipas que passaram por mim enquanto tirava fotografias a uma igreja. Por acaso esta é uma boa história para recordar, pois passei por lá faz dois dias e no exacto lugar onde eu me encontrava a tirar a foto, estava uma outra rapariga a fazer o mesmo. LOGO me ocorreu que ela era uma sortuda. Porque eu não ia parar e recriminá-la por aquilo que estava a fazer como as outras duas doidas fizeram comigo. E ela pode seguir caminho sem nunca conhecer a sensação que é passar por aquilo.

Bom, regressando ao episódio no autocarro. Eu saí, outra passageira veio atrás, depois outro mas a verdade é que a pesar de o autocarro estar imobilizado fazia já muito tempo, o próximo ainda estava a 12 minutos de distância! Não sei como mas o homem-estranho acabou por sair. E nós regressamos ao veículo. Eu agradeci ao homem-estranho, que estava como um zombie parado no lado de fora do autocarro e agradeci ao motorista ao entrar. Sentei-me e senti um tanto de desconforto com a gargalhada e risos que o homem-bem-vestido exibia à medida que relatava o seu confronto com o estranho. Disse ele que era capaz de o arrastar para fora do autocarro se fosse preciso.

Um tanto gabarolas para o meu gosto pessoal. 

Quanto ao homem-estranho, não sei o que lhe aconteceu. O motorista alertou o motorista seguinte, fez a descrição física completa do indivíduo e acusou-o de o ter insultado e recusado a abandonar o veículo. Não cheguei a entender se existiu insulto, embora o homem tenha ruminado algo ao entrar. Agora ficou marcado, como se calhar também eu podia ter ficado naquele mesmo dia, caso o motorista ao qual fiz o gesto do manguito, tenha achado esse gesto ameaçador e impróprio para a sua nobre pessoa. 

Acho que aqui abusam nos direitos e esquecem-se um pouco da educação. Como se sabe, em Lisboa, se um motorista passa com o autocarro cheio de passageiros e não pára quando fazes sinal, é costume ele assinalar com um gesto de mão ou abanando a cabeça - mas é RARO não existir essa comunicação. Existe o cuidado, a atenção, de deixar saber aos passageiros à espera na paragem o que está a acontecer. Aqui não. Estou à espera do veículo, vejo-o a aproximar-se, faço sinal. Espero que se aproxime mais, volto a fazer sinal. E este passa por mim sem reduzir velocidade, o motorista nem me olha na cara, vem a mascar pastilha e ignora-me! Acho isto do mais rude que pode existir. Acho-os muito rudes muitas vezes, naquilo que podiam ser gestos muito simples e fáceis de ter.

Custava acenar com a cabeça? Fazer um gesto? Deixar-me saber que não ia parar?
Como era a única na paragem e obviamente ninguém tocou na campainha para sair naquela onde me encontrava, o motorista ignorou-me! Senti-me insultada. Fiz-lhe rapidamente um manguito que espero sinceramente que ele tenha visto através do espelho retrovisor.

Já que não sabe comunicar, eu sei! Se não aprendeu o que é comunicação visual, eu ensino-lhe.
Se eles, motoristas, sabem acenar uns aos outros quando se cruzam e sabem fazer sinais de luzes para se cumprimentarem, o que custa? O que custa comunicar ao passageiro que ignoras que não paras por algum motivo de força maior?

É que é muito rude.
Muito mesmo.

Novamente hoje, já com a paragem cheia, o autocarro passa a alta velocidade e não pára para nos deixar entrar. Todos olharam uns para os outros. Obviamente. Ninguém gosta de ser ignorado! Não sou só eu, foi a paragem inteira. Mas desta vez, viu-se um outro autocarro a aproximar-se. No meu caso, eu vi DOIS passarem enquanto caminhava para a paragem mais próxima e aguardei aquele por cinco minutos.

Estava longe de esperar que fizesse aquilo. Já tinham passado DOIS! Esperei mais 17 minutos pelo próximo. E aqui é muito tempo! Porque é suposto eles passarem em intervalo de seis minutos entre si. 


Bom, mas desviei-me muito do tema principal. Há dias assim. 

FALAR ou CALAR?

No caso do homem-estranho, ele devia ter-se calado ao entrar. Não calou, o motorista achou que tinha sido insultado e reagiu de forma extrema. Escudado pela lei, ninguém o podia punir. Está no seu direito e nem digo que tenha feito mal, pois quando vi o homem estranho entrar, pensei comigo mesma que ele não devia entrar. Era muito lento nos gestos, estava a tomar o seu tempo... como se vivesse num tempo próprio, só seu. E isso não cai bem ali. Até nem procurou se sentar de imediato, levou o seu tempo, tanto tempo que ruminou alguma coisa que despoletou tudo o que aconteceu de seguida.

E FALAR?
Devia ter falado quando lhe dirigiram a palavra. Devia ter tentado justificar-se, defender-se, até mesmo desfazer qualquer equívoco. E agir. Mas calou-se quando não devia e falou quando devia estar calado.

Quantos de nós não faz o mesmo?
Infelizmente identifico-me bastante com essa parte do estar calado quando se devia estar a falar. Há situações em que se está tão certo que quando se escuta tanta coisa errada, fica-se mudo. Pela injustiça. Já vos aconteceu?


5 comentários:

  1. Já me aconteceu de tudo. Falar quando não devo é calar quando devo falar, mas também quem é dono da verdade é sabe quando se deve falar ou calar? É tudo muito subjetivo e depende sempre da opinião de cada um...

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  2. E o qual Problema em deixar o homem estranho viajar no carro, já que tinha pago por isso?

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    1. Também não entendi. Mas aqui facilmente acontece isso. Basta o motorista achar que tem motivos para recusar um passageiro. Estar alcoolizado é motivo para tal, por exemplo. Dizer palavrões ou usar linguagem inapropriada. Aqui há muita gente a viver com o rabinho entre as pernas pelo menos na aparência. Há sinais por toda a parte a "lembrar" as pessoas que não se toleram comportamentos abusivos: no banco, nos hospitais, nas clínicas, nos autocarros - em TODO o lado.

      Descobri que os extremos tocam-se. Existem até muitas semelhanças entre um regime Ditador e um regime "livre" mas reinado por "leis".

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    2. Muitas vezes AMBOS castram a liberdade do indivíduo.

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