Deparei-me com o «desabafo» de uma pessoa no facebook, onde escreveu, indignada, que nestes dias os cemitérios estavam "cheios de gente". E isso, por alguma razão a revoltou (queixa-se que não teve onde estacionar o carro à porta) e a faz chamar todas essas pessoas que ainda se deslocam aos cemitérios, de HIPÓCRITAS. "Passam o ano inteiro sem lá por os pés e enchem-nos neste dia" - escreveu, revoltada.
Tive uma vontade imensa de lhe dar uns "esclarecimentos", mas abstive-me. Primeiro porque percebi que ia ser quase inútil, segundo, por não ter qualquer intimidade com a pessoa. Na realidade nem sei de quem se trata - é o que dá o facebook permitir ler os posts comentados por amigos de amigos.
Mas este é um tema que senti necessidade de abordar.
Nos últimos anos parece que passou a ser comum e aceitável que se escute as pessoas a fazerem esta «crítica». E chamarem de hipócritas aqueles que se deslocam aos cemitérios para deixar flores nas campas de entes que lá estão. Posso perguntar qual o mal disso??
Onde está a hipocrisia? Tanto se lembra dos mortos aquele que vai todos os dias ao cemitério, quanto aquele que só lá vai nesta altura do ano ou até mesmo aqueles que NUNCA lá vão. Não é a frequência no cemitério que define os "bons e os maus", os que "gostam muito e os que gostam pouco". Francamente... haja bom senso na percepção das coisas. Não é por aí que se amou mais ou menos o ente que se perdeu. Talvez seja por aí que se VEJA quem tem dificuldade em andar para a frente com a própria vida e fica preso no passado, na dor, na culpa e nos remorsos. Mas não é o que quantifica o afecto sentido pelos finados.
O que aqui se fala, neste dia de Todos-os-Santos, é de TRADIÇÃO. Uma tradição que, infelizmente, está a perder-se e gradualmente está a ser aglutinada por uma outra, importada, de nome Halloween. As pessoas parecem estar a esquecer, de todo, o lado religioso da data e se dedicam com mais facilidade ao lado pagão.
No meu entendimento é muito prejudicial fazer este tipo de crítica leviana, generalista, acusando todos de ser hipócritas. Primeiro, porque as pessoas têm o direito de ir ao cemitério quando quiserem. E se fizerem questão de ir somente no dia mais significativo, um dia especial no calendário, que mal há nisso? É melhor do que não ir de todo, é melhor do que preferir se mascarar com um chapéu de bruxa e esquecer os finados. Acho bonito que haja um dia, um dia especial, só para despoletar à nossa lembrança as memórias dos momentos tidos com aqueles que já estão do outro lado.
Ao condenar, de forma leviana, aqueles que pisam um cemitério nesta data estão a contribuir para que, aos poucos, essa tradição se perca. Assim como já se perderam outras, outras que não cheguei a experimentar e que são para mim memórias não minhas mas as dos relatos das memórias já ténues de costumes que outras pessoas costumavam realizar. E não é isto o mais triste? Tenho apenas uma percepção indefinida que me diz que, nesta data, era costume as crianças irem, porta à porta, pedir o pão-por-Deus. E as pessoas ofereciam o que podiam. Porém nada de doces, chocolates e afins mas figos, romãs, passas, pinhões, castanhas, broas. Coisas nutritivas, alimentos sãos (e bem bons). Pessoalmente acho mais bonito e emotivo pedir o Pão-por-Deus. E receber frutos, alimentos sãos, energéticos, naturais, ao invés de coisas processadas que bem podiam ficar no balde do lixo ao invés de fazer todo o percurso pelo intestino e sair pelo traseiro, contribuindo pouco para a saúde e muito para a obesidade.
Vídeo de 2011 mostrando a continuidade da tradição "Pão por Deus".
Adaptada às comodidades actuais, oferecem-se chocolates e rebuçados do "Lidl", alguns até em pratos de halloween, mas ainda existe quem faça aquilo que oferece, um pão de broa, por exemplo.
Que haja um dia especial em que os cemitérios «se enchem de gente» é algo bonito. Não é algo feio. Se existe alguma «hipocresia» de algumas pessoas, também existe sentimento verdadeiro de outras. Nada de julgar. "Não julgues, não lances a primeira pedra". É aproveitar. Uma pessoa vai ao cemitério quando bem lhe apetece. Normalmente estão quase vazios, o que é excelente para contemplar, reflectir e para se estar, agradavelmente, em paz. A afluência torna-se maior e aquilo parece um «estádio de futebol» num único dia do ano? Deixem. É bonito recordar os que partiram desta forma, levando flores, nem que seja uma vez por ano. Espero que esta tradição não se perca.