Tenho uma menina na família que está a ser educada com alguma disciplina pelos pais. Ela é uma menina expansiva, que fala muito e articuladamente, sabichona, viva, interessada e vibrante. Mas à medida que cresce está a mudar. Vê-se menos desse brilho e fica mais recatada. Assim que ela escuta o seu nome a ser chamado pelos pais sai disparada a correr e não perde tempo a lhes aparecer à frente. É muito obediente, a pesar de ter fama de ser "terrível". Uma reputação injusta, a meu ver.
Tudo o que os pais lhe dizem para fazer, ela faz prontamente. E qualquer adulto em geral recebe essa mesma atitude. Para minha surpresa vejo que obedece prontamente aos pais quando lhe dizem para desligar o computador para ir estudar, ou quando lhe dizem que tem de acabar de brincar para ir estudar, ou mesmo quando lhe ligam a dizer que tem de se ir embora de onde está a conviver e a brincadeira vai terminar. Por vezes ela tenta dialogar com os pais, perguntando-lhes se não pode ficar mais um bocado, mas se escuta um não, acata-o sem insistir. Só que tudo isto ela aprendeu da maneira "dura". Ou seja, através de disciplina, de muita contrariedade, de castigos e privações. Sinto que a sua educação não está a receber o equilíbrio ideal entre o afecto/carinho e a disciplina/aprendizagem.
Sei que não é fácil educar crianças, sei que os pais querem o melhor para os filhos, mas também sei que isso nem sempre se consegue. Os pais também falham. E perceber isso não é vergonha alguma. Vergonha é perceber e nada fazer para o mudar, mantendo o comodismo de comportamentos que se provam nocivos.
Não sei se é realmente o caso desta criança, mas identifico nela todos os comportamentos que me indicam a presença de educação rígida construída em cima de sentimentos magoados que eu também recebi. Uma educação que castra muito e libera pouco, ou quase nada. Tal como ela, também eu fui uma criança vibrante. Ao ponto de durante os anos que se seguiram até a adolescência, ainda viver aos olhos dos outros como se fosse a "tal" criança esperta e sagaz que todos pareciam recordar. Falavam comigo durante longos tempos a contar-me as peripécias e a forma como eu percebia as coisas. Estes adultos que me reencontravam vibravam, iluminavam-se e eu acho que esperavam encontrar uma versão crescida da criança que fui e ficavam ali a sondar, a ver se eu "lhes aparecia" tal como me recordavam. Costumava deixá-los falar, escutar, dizer que não me lembrava de nada porque a maioria das vezes era verdade e pronto. Eles lá iam, talvez algo tristes e desconfiados por aquela criança" não se encontrar mais no corpo da quase adulta. Não me sentia muito confortável por tantos me recordarem com tanto entusiasmo, saudosismo e rasgados elogios, revelando tanto gosto e alegria ao me reencontrarem. Porque me faziam lembrar o que podia ser mas não era. Faziam-me lembrar o "eu" que reprimi e me foi «apagado» à força mas que um dia esperava poder reencontrar antes que "morresse" de vez. Lembro-me de uma ocasião em que uma senhora muito entusiasta ficou a me relatar pela porta as memórias que tinha de mim e eu a pensar: "Essa não sou mais eu".
Está certo que nós mudamos. Não creio que mudemos na essência, mas sofremos alterações sim. Está previsto que o ser humano mude à medida que aprende a crescer e a conhecer o mundo. Nem todas as mudanças têm origem na disciplina muito ou pouco rigorosa, o factor biológico também entra na equação. Mas quando a disciplina é castradora, existem pequenos sinais como este da obediencia imediata e pronta que esta criança revela. Ela tem uma atitude de obediencia que mais depressa relacionariamos com a de uma serviçal com receio de uma reprimenda dos amos. E como já referi, creio que aprendeu a reagir assim às custas de muito grito, algumas pancadas no traseiro e muita imposição.
Também já vi o pai a brincar entusiasticamente com as crianças dos outros, a menina a meter-se no meio para entrar na brincadeira e a levar uma reprimenda. Acho que o pai não entendeu que a magoou e a fez sentir preterida, posta de parte, uma vez que enquanto brincava com a outra, ordenou que a sua filha ficasse quieta, dizendo-lhe que não devia atrapalhar. A criança deve ter-se perguntado desta vez e se calhar noutras também, porquê isso, porquê o pai é tão brincalhão com as outras crianças e menos com ela. Acredito que os sentimentos começam a ficar magoados e vejo que ela fica de "cara fechada" sem querer explicar o que tem quando algo a magoa. E reconheço isso, já passei pelo mesmo. Outras vezes detecto que umas lágrimas lhe caem pelo rosto e quando vou perguntar o que se passa, porquê ficou triste, responde apenas que "não é nada" (Ah! É tão parecida comigo!!!).
Pelo que hoje estava aqui a relembrar como a vi recentemente a ter estas atitudes de menina bem comportada e obediente e a pensar se não as assimilou através de um excesso de disciplina rígida e uma certa carência de momentos de maior afecto. Porque existe outra criança na família que recebe uma educação oposta. E é fácil entender as diferenças quando existem exemplos distintos. Creio que a personalidade da primeira possa ficar algo "danificada" por receber esta educação mais castradora e que a outra acabe por florescer mais, visto que não sendo uma criança tão expansiva nem tão comunicadora e articulada, foi educada com disciplina mas acima de tudo liberdade. Principalmente para tomar algumas decisões sozinha e assumir a responsabilidade do estudo. Foi exposta a todo o tipo de coisa- não existiram temas "tabus" a serem discutidos na presença da criança nem foi de todo poupada aos desentendimentos dos pais à sua frente (outra coisa com a qual me identifico). Ela pode ver televisão enquanto toma a refeição e escutar todas as más notícias dos telejornais. A outra não tem TV acesa enquanto come, não podia ver filmes com cenas de adultos nem escutar as más notícias dos jornais. Creio que ambas as formas de educar são aceitáveis e acho que encontraria um meio-termo entre estas duas, pois nem uma nem outra estão desprovidas de falhas algo claras. Mas ainda assim concluo que a presença de LIBERDADE é ESSÊNCIAL para o desenvolvimento do ser humano. Agora, o que distingue essa liberdade da «liberdade» que faz as crianças crescerem sem noção de responsabilidades ou limites, acho que é a presença de interesse paterno, transmissão de valores e afecto. Só sei uma coisa: não é fácil, mas também não precisa de ser complicado.
Sinto carência e indícios de problemas de auto-estima naquela menina. Quando tiver com ela vou dar-lhe todo o meu tempo e do meu jeito descontraído, vou puxar o diálogo para ver o que pensa das coisas, como se sente, o que quer e com o quê sonha. Quero perceber se vai se expressar livremente ou manter algum vestígio da apreendida recatez. Proibir as crianças de falar não lhes apaga os pensamentos. Só magoa.
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