sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Emoção que garante lágrimas

 

Deparei-me com este vídeo no youtube de animais de estimação que reencontram os donos após algum tempo de ausência. A maioria animais perdidos, que foram devolvidos. Imaginam já o tipo de emoção que aí vem... Pois. E eu, lavada em lágrimas aqui deste lado do ecrãn.

Não só porque é algo muito emocionante de se ver - um amor puro a se manifestar. Felicidade pura. 
Emociono-me também por já ter passado pelo mesmo. Quando era estudante universitária fui estudar para longe (mas no país) e separei-me por algum tempo do cão da família. Visitava-os com bastante regularidade, mas a felicidade do animal, a forma como me recebia sempre que voltava a casa, era esfuziante. E eu retribui-a, dando-lhe festas, acolhendo as suas lambidelas, sorrindo de dentes à mostra ao ver a sua cauda a abanar, pegando nele, acariciando-o e deixando que ele ficasse comigo o tempo que desejasse, voltando a adormecer ao meu colo, ainda que precisasse de me mexer. 

A questão que sempre vai emocionar-me de forma triste, são, na realidade, duas circunstâncias. A primeira é que, por uns meses, fiquei sozinha na casa em que morava. Sentia solidão e queria ter a companhia do cão comigo. Precisava de distribuir e receber afecto e o cão precisava também de mudar de ares. Tinha espaço para ele - e um bom espaço. Com sol, que ele sempre adorou e fazia bem à sua saúde, uma varanda arejada e solarenga, área verdejante para passear. Pedi a meus pais que mo deixassem trazer comigo por umas semanas. O cão ia adorar saber onde eu me enfiava quando não estava em casa. Ia ser bom para ambos.  

Meus pais não permitiram. Não importou o quando eu insisti. E eu insisti. Era tão importante para mim! Ia mesmo ser vital. Não deixaram. Com as suas desculpas sem sentido, falta de vontade em me agradar. Sempre do contra. Sempre cuidei do animal desde miúda, não ia ser em adulta que lhe ia faltar alimento ou ia sujeitá-lo a alguma fatalidade. Ele estava habituado a ficar sozinho em casa durante as horas de trabalho e escola, portava-se bem, só fazia as necessidades na rua e pedia-nos quando queria sair. Na realidade meus pais sabiam que não haveria problema algum, simplesmente sempre que podiam nao me deixavam ser feliz. O cão não era um cachorrinho. Tinha mais de 12 anos e entrou na minha vida quando eu tinha 10 e ele quatro semanas de vida.  

Um dia, contava ele quase 16 anos, visitei a casa e fiquei surpresa com a hiperfelicidade do cão. Ele já estava velho. Não se mexia mais com agilidade. Naquela noite porém, assim que a porta abriu, o cão apareceu e pulou tanto, tanto, tão alto, como se tivesse voltado à sua juventude. Estava eufórico. A chorar de felicidade. Fiquei assustada.

- "O que se passa? Pronto, pronto... já estou aqui".

Tentei acalmá-lo. O seu entusiasmo não passou rápido. Estava eufórico. Já se tinha habituado à minha ausência e às minhas visitas. Aquele comportamento era tão alarmante.

Quis que ele ficasse solto na casa para escolher onde queria dormir. Mas meus pais insistiram que ele tinha de ficar fechado na varanda. Algo que eu reprovava, porque a varanda era húmida e fria. Entrava água no interior durante o inverno. Mas meus pais, sempre num tom de voz a mandar vir, disseram-me que o cão não podia ficar pela casa, que "cheirava mal" "empestiava a casa" e "largava pelo". "fica comigo no meu quarto" -sugeri. "Nem pensar! Proibo-te de teres lá o cão! O cão é um animal, os animais dormem no chão da rua, não faz mal nenhum. Lá chegas tu com a mania que sabes mais que os outros!".

Na manhã seguinte vou soltar o cão da varanda e logo percebo que algo está mal com ele. Vejo que esta sentado, os olhos com sono, mas quando o pescoço tomba para o lado ele gane e volta a ficar de pé e de olhos abertos, sem conseguir adormecer. O animal não consegue deitar o corpo e está com dor!

Decido levá-lo ao veterinário. Meus pais são contra. Grande discussão. Enorme. "És maluca! O cão é velho! Eu não vou gastar dinheiro com ele! Deves pensar que os veterinários são baratos! Pagas muito e não vão poder fazer nada, porque o animal está velho e tem de morrer!". 


Não me importa o "quanto vai custar". Não me interessa que o animal "vai ter que morrer" não concordo que é "dinheiro jogado fora". Podiam-me cobrar 200 euros. Não importava. Não era essa a questão. Ele precisava de alívio, de ajuda! Não importa se é velho!! Não é porque se está velho, a cheirar mal e doente, que não se deve procurar diminuir o sofrimento ou não demonstrar qualquer compaixão.

Pensei tanto, mas tanto, ou melhor, senti, tive uma visão do futuro: "um dia vão ser vocês os velhos a sofrer e quero só ver se aí também vão concordar que vos metam a um canto húmido, sem assistência médica para cuidar do que vos aflige e vos digam:" um dia vão ter de morrer porque estão velhos". 


Levei o cão ao veterinário, que era mesmo ali perto. Ele prescreveu uma medicação, disse que os próximos dias iam ditar o que ia acontecer e para ver como o animal ia reagir ao tratamento. Até lá ele devia ser mantido quente e sugeriu que lhe colocasse uma botija de água quente na cama.

Meus pais, como sempre, do contra. Grande briga porque comprei uma mini botija. Não me deixaram colocá-la debaixo da manta na sua cama. E insistiram que o cão devia dormir na varanda novamente. Depois de me inquerirem quanto paguei pela consulta - não era relevante para mim, começaram de imediato a dizer que eu tenho de aceitar que o cão vai morrer e que o melhor a fazer era a eutanásia. 

Inicialmente o cão melhorou. Mas estava fraco - sem comer e sem beber por dias - vim a descobrir, precisou muito da injecção que o veterinário lhe aplicou. Meus pais não lhe davam nova comida se ele rejeitasse a lá posta. Por algum motivo sério o animal rejeitou e o prato de comida ficava ali dias seguidos, ressequida... para que ele a comesse. Pobre animal! Quando mais novo não era tratado assim e agora que ficou velho ao invés de serem mais caridosos, pareciam querer castigá-lo por envelhecer. 

Com a injecção que lhe deu fluidos, o cão melhorou mas depois, vi-o cair no chão e urinou ali mesmo. Por um instante julguei que estava morto, mas depois vi que ainda respirava e estava consciente. Cair não era incomum, visto que ocasionalmente sofria de epilepsia. Mas sempre recuperava totalmente. Desta vez existiu urina.  

Meus pais a insistir: "Injecção letal - injecção letal - injecção letal!" - é isso que é preciso fazer. A cantiga repetida aos meus ouvidos desde que o animal era um cachorrinho saudável de dois aninhos, a correr por todo o lado.  "Tens a mania que gostas mais do animal mas se lhe queres bem não o deixas sofrer!"

Não tinha passado um dia desde que o cão regressou da consulta ao veterinário. Mas vê-lo assim, e perante a repetição de papagaio de meus pais para que levasse a injecção da morte, pedi desculpa e permissão ao cão para que o levasse ao veterinário. 

Acariciei-o, disse-lhe o que ia acontecer e se ele deixava e me desculpava. Era como se ele soubesse. 
Acho que ele soube ao mesmo tempo que eu. Naquele consultório talvez uns 14 anos antes. A sala de espera do consultório do veterinário, cheia de gente com seus animais. 

Catorze anos antes, estava sentada numa cadeira com o meu cachorro ao colo, para levar uma vacina qualquer. Uma mulher com um cão maior pelo chão reparou na juventude do meu e disse que o dela tinha 14 anos. Soube, nesse instante, como quem recebe uma mensagem do além:

-"O meu vai durar 15".

Meus pais vinham a anunciar a sua morte desde um ano de idade. "Os cães são diferentes das pessoas" "envelhecem mais cedo, são 7 anos por cada ano humano... não vivem mais que 20 humanos, por isso habitua-te que o cão pode vir a morrer ao fim de dois, ou três anos." - disseram. E o cão a viver, cinco, seis, sete, oito... 10, 12, 14... e então chegou o ano da minha "visão": 15.

Não importava que um dia a morte viesse. Gostava é que eles parassem de a anunciar constantemente. Que a deixassem vir quando quisesse, não porque não contavam ser donos de um animal por tanto tempo. 

Naquela mesma sala de espera de 14 anos antes. Na mesma posição de cadeira. Com o animal consciente do lugar onde se encontrava. Um lugar que ele tinha medo e se recusava a entrar. Mesmo a metros de distância, só de passar perto, ele fazia força com as patas e se recusava a continuar andar.Em pânico e terror. Tinha de pegar nele ao colo, dar-lhe festas e dizer-lhe: "Não vamos ao veterinário. Fica descansado. Não vamos ali". Com o tempo bastava-lhe as minhas palavras e ele continuava a andar puxado pela trela. Para quem só entrou no veterinário quando cachorro e nunca mais lá pôs os pés, a reacção do animal era quase inexplicável, anos e anos depois. Acredito que os animais têm sentidos mais apurados e ele deve ter detectado a morte e sofrimento dos seus semelhantes. Por isso, quando o levamos para lá de carro, e ele entrou naquele espaço.. ele sabia. 

Tal como sempre soube, anos antes.

Ali era o lugar da sua morte. 



4 comentários:

  1. É tão triste e injusto que não vivam por mais tempo

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    1. O que me aflige o coração é achar que no final não foi bem tratado porque... ficou velho. Ainda que não tenha sido o tratamento que lhe dei, foi aquele que constatei que estava a receber. Poderia ter lutado mais por ele? Acho agora, mais experiente na vida, que ia conseguir que o tratassem melhor. Na altura foi inutil. Coisas simples como lhe dar comida fresca - que me proibiram porque achavam que o aninal tinha de comer o que lhe era dado r enquabto nao comesse nao recebia outra. Wuando cheguei a casa e ele festejou cono nunca a minha presenca acho que era um misto de pedido de ajuda com alegria. E falhei-lhe. Nao lutei o suficiente pela sua vida.

      Nao que os outros nao gostassem do animal. Mas de certeza que nao gostavam da sua velhice. Meteram-no de lado. A sofrer no frio e humidade. Minha irma muitos anos antes, costumava empurra-lo, afasta-lo, repeli-lo porque ocasionalmente sofria de uma doenca de pele e ficava sem pelo em algumas areas corpo e viam-se crostras. O animal nao tinha culpa de ter uma doenca dessas. Provavelmente ate foo causada pelos nossos habitos com ele.

      Mais novo sempre pode andar pela casa durante a noite. Aprendeu cedo a se comportar "bem" - sem destruir nada e sem fazer necessidades. Se precisasse sabia que era na casa de banho que teria de aa fazer. Um animal tão simples de lidar, que vi crescer... ficou velho e foi posto de parte por isso.

      Nao deixa de ser um choque constatar nessas circunstâncias que a tua familia nao corresponde ao que esperavas.

      EU podia ter lutado mais pela sua qualidade de vida.

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  2. Os cães em casa dos meus pais morrem sempre velhinhos.
    Quando estão a sofrer muito os veterinários pedem aos meus pais para irem almoçar fora e fazer compras...
    Boa semana

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    1. Eutanásia... Compaixão por animais que não existe para os humanos? Não sou contra mas para tal decisão acontecer acho que é preciso ter certeza que o animal não pode recuperar. Pelo menos há que fazer uma tentativa de o ajudar e depois... dar tempo. Se não resultar então sim, pode-se fazer isso.

      Faz-me recordar outro arrependimento: não estar presente quando lhe foi dada a injecção. Não saber como foi ainda me incomoda - mais de 15 anos depois do facto. Sou o tipo de pessoa que não vira as costas e vai fazer outra coisa... preciso de SABER. Insistiram para que não estivesse presente e deixei o pobre do animal com estranhos, para que fosse o rosto de estranhos a última coisa que ele via no mundo. Até hoje isso me traz lágrimas aos olhos. Se a decisão é tomada acho que se tem de estar ALI para a ver a ser executada. Nada de "paninhos quentes" para desresponsabilizar a pessoa... Se a pessoa quer, porque não? Agora se emocionalmente é demais, entendo. Emocionalmente a responsabilidade fala mais alto. Deixar o animal morrer sei lá como porque ninguém vê... isso faz-me pior do que se tivesse assistido.

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