sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Sem noção

 "Estás sempre em casa!"- diz-me a M  depois de disparar um "vais trabalhar hoje?" assim que saio do quarto, onde permaneci tres horas .

A M. sofre do mesmo síndroma do qual padecia o rapaz da primeira habitação. Quem esta lembrado? É o sindrome do "quero a casa so para mim". 

Ele, 50 anos, so trabalhava aos fins de semana e ficava por casa todos os outros dias. Ainda assim sabia-lhe a pouco.  Cada vez que via um de nos tres de folga, logo nos aconselhava a ir passear, aproveitar o dia. Dizia: "Acho que nao devias ficar em casa. Digo isto para o teu bem. Fazia-te bem ir dar uma volta. Podes apanhar o comboio até outra cidade..."

Uma pessoa com turnos rotativos com horarios doidos, que todo o final de turno entra'em casa arrebentada, muitas'vezes direta para a cama sem duche por nem conseguir dar um passo mais e quando finalmente consegue um dia para descansar, tem um colega na casa a dizer-lhe repetidamente isto.

Percebe-se logo o que realmente pretendem.

A M. queixou-se que vai regressar ao trabalho ja para a semana.  "É muito dificil acordar as sete da manha e chegar a casa la para as sete da tarde"- diz-me. Concordei. Mesmo sabendo que nao o vai fazer todos os dias. "Pensei que ainda tinha uma semana mas o lockdown termina na proxima... queria continuar por casa, entendes o que quero dizer?"

Respondi que nao sabia, porque nunca estive em forlorn. (ficar por casa a receber salario mas sem trabalhar).

O que sei eu realmente sobre o que isso é? Como a pessoa se sente por ter de abandonar esse conforto de meses ou semanas e regressar a rotina?

Nao sei absolutamente nada.

Durante a reclusao obrigatoria devido a pandemia estive sempre a trabalhar fora de casa. Foi ate o meu periodo mais requisitado. 

Ha coisa de tres meses arranjei dois empregos. Porque um ja estava a ser menos regular. Nem por isso me deu mais tempo livre, porque quando se conta em ir trabalhar e no ultimo minuto recebe-se a mensagem de cancelamento, todo o teu dia girou a volta daquele compromisso. As coisas que deixaste de fazer e o que podias ter feito e nao fizeste por priorizares o descanso antes da labuta.  Muito esforço, pouco salario. 

A decisao de conseguir um segundo emprego pareceu logica. E consegui, mesmo nestes tempos dificeis. Foi o emprego que deixei na terça-feira. Teve ser. Estava a ser muito menos regular do que o prometido, com a inconveniência dos dois turnos dados por semana estarem sempre a coincidir com os atribuidos no outro trabalho. Andava a perder saude e dinheiro.

Na quinta-feira consegui outro emprego. Esta e a novidade que ainda nao havia contado. É prematuro e nao quis azedar a coisa por a mencionar cedo demais. É num armazém (é o unico tipo de emprego que tem sobrevivido ao Covid). Aquele que deixei era o de uma empresa  Americana, noneadamente a conhecida Amazon. Foi a minha segunda experiencia com empresas americanas em solo ingles e em termos de organização e simpatia estao no meu top do raking. Esta nova é alemã. Primeira impressao: desorganizada. A ver vamos.

Ja tive de cancelar o primeiro turno - para amanhã de tarde, por o final coincidir com o inicio de um turno que me ofereceram a ultima da hora na empresa a qual sempre vou dar prioridade: a primeira. 

Ja trabalho com eles faz dois anos, conheco os cantos a casa e... ganho bem - se tiver horas para fazer.

Nenhum outro lugar em parte alguma vai pagar proximo do que ganho ali. Em uma semana na Amazon, com dois turnos de extenuante trabalho, apos pagos os impostos, fazia menos do que com um unico dia de trabalho na empresa original. Fui percebendo que estava a prejudicar a minha saude e a comprometer o meu desempenho na empresa que nao quero abandonar. 

Tive de sair.

Em termos de pessoas que ali encontrei e ate de sistema de trabalho, foi uma perda. Mas tambem exigem muito de ti, fisicamente. Nem todos conseguem manter um ritmo acelerado continuo por varias horas, para atingir o target numerico. Principalmente quando a empresa exige que se cumpram as regras do covid, e impoe uma distancia de 2m a todos os trabalhadores. Tinham instalado  cameras biométricas que toda a hora enviavam um relatorio. A minha temperatura corporal era medida todos os dias a entrada e mascaras e desinfectantes estavam disponiveis por todo o lado.

Na empresa original muitos nao usam mascara, ninguem cumpre distanciamento chegando a roçar uns nos outros, existiram casos positivos de Covid e nao isolaram os trabalhadores em contacto com o infectado/a. Alem disso tudo e mantido muito porco, sujo e desorganizado. 

Existem aspectos positivos mais e menos bons em tudo.

O que me fez especie foi mesmo o comentario da M. 

No ultimo mes ando a sair de casa as 3 da manhã, para, por vezes, so regressar por umas horas e voltar a sair para mais um turno inteiro de trabalho noutro lugar. Passei 24 ou 48h sem vir a casa realmente para ficar. O meu cérebro ficou a sentir que dois ou tres dias foram apenas um.  No passado domingo sai as 4 da manha do emprego1, onde entrei as 22h de sabado, para apanhar o autocarro as 4.10, descer na estacao, apanhar um transfer e chegar as 4.30 ao emprego2. Para recomeçar a trabalhar no duro, a suar e sem tempo de ir ao wc mesmo tendo vontade. Porque não deu para parar. E ali fico a trabalhar ate as 13h. 

Apanho novamente o transfer, depois outro autocarro e finalmente chego a casa as 14h, nao tendo dormido a noite, tendo saido as 21h do dia anterior e sabendo que era para sair novamente as 18h so para regressar as  23h e voltar a sair as 3am para a Amazon e regressar as 14h do dia seguinte, já uma segunda-feira. 

Em casa o "dia inteiro" (tirando as horas que andei na cidade para ir assinar o contrato e passar pelo supermercado) só fiquei realmente ontem. Contrariada, porque a ultima da hora quando menos esperava,  cancelaram-me o turno pelo qual ansiei a semana inteira, por contar que pudesse vir a durar 12h.

E vem a M. que não sai para o emprego dizer-me que me vê sempre em casa e quer saber se pelo menos hoje vou trabalhar.















 


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