sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

112

Nunca na minha vida tinha precisado chamar uma ambulância. Nunca estive internada num hospital, nunca fui ver um doente num hospital, nada sei a respeito destes ambientes. Mas depositei sempre nos serviços básicos.

Até um dia.

Faz quase um ano que fui acudir um familiar idoso, que me telefonou a queixar-se que já tinha ligado para o 112 a pedir uma ambulância cinco vezes, e que lhe desligavam o telefone. Isto é grave. Não acreditei que a pessoa mentisse, porque a mentira não fazia parte do seu carácter, parte da geração a que pertence e da vida que teve. Também não acreditei que os serviços de socorro o tivessem feito intencionalmente. Portanto interpretei tudo como um acidente.

Depois chegou a minha vez de chamar a ambulância pelo telefone. Do outro lado atende-me um operador cuja primeira questão que me coloca, é a afirmação de que já tinha ligado antes. Respondi que eu não, mas que daquele número já se tinha tentado fazer a chamada. O operador diz para aguardar para ver a disponibilidade de ambulâncias. Aguardo. Não têm ambulâncias e o operador diz para ligar para os bombeiros. Peço-lhe o número, anoto-o e faço a ligação. Vai parar à casa particular de um senhor que adivinho familiarizado com aquele tipo de telefonema, e que depois apressadamente me corrige e desliga o telefone. Ligo então para os bombeiros. Música. Escutei muita música, o que conseguiu deixar em mim, uma pessoa calma, uma impressão de nervosismo. A voz do outro lado, sempre aquela voz que parece vir de uma pessoa humilde e sem muitos estudos, prontifica-se a verificar se podem prestar auxílio. Mais um pouco de música e a resposta regressa não.

Entre gemidos, telefonemas por telefone e telemóvel, terminei a pé, a amparar o idoso que se queixava de dores abdominais, até uma praça de táxis. Para ele estava a ser difícil aceitar que a ambulância não tinha vindo. Já havia chamado antes e esta vinha sempre. Repetiu isto umas três vezes até que lhe respondi: da próxima vez já sabe: chama um táxi!

A próxima vez não demorou a chegar. Essa vez foi fatal. Morreu, sem ter encontrado um táxi que o levasse até ao hospital.

Até ter surgido nas notícias o caso do falecimento de duas pessoas por falta de socorro de ambulância, não tinha entendido a severidade do que vivi. Lidar com a morte de alguém, quando as circunstâncias podiam levar à vida se o socorro chegasse a tempo é muito doloroso. Todos se responsabilizam um pouco pelo sucedido e leva tempo até nos sentirmos perdoados.

A fé que depositei no sistema era então praticamente cega. Cheia de compreensão, entendimento. Se argumentassem que existem poucas ambulâncias, aceitava, compreendia. Sempre tive presente que uma ambulância só se chama em caso de emergência. Sou do tipo que fica a gemer de dor sem ir logo pedir ajuda. O idoso em causa não. Tinha dores, ia para o hospital. Sabem como a sociedade em geral vê as pessoas assim? Recrimina-as. Estes são os “chatos”, que chamam uma ambulância por qualquer coisinha. São os idosos que “não têm nada” e ocupam o tempo precioso dos auxiliares médicos. São os familiares “chatos” que querem ir sempre para o hospital e pedem ajuda. É assim que nós, como indivíduos nesta sociedade vemos, por vezes, aqueles que pedem ajuda.

Eu não sou assim. A sociedade preparou-me bem para não a chatear quando estiver doente. Estou sempre bem. Qualquer dor é passageira. Uma constipação nunca é uma gripe e tudo é passageiro e não necessita de medicação.

As notícias de como funciona na realidade o sistema de auxílio por ambulâncias lembram-me sempre da morte deste idoso. Ele é que agia correctamente. Por vezes ia sozinho de táxi para o hospital a meio da noite, outras vezes chamada uma ambulância. Mas nunca perdeu, como eu perdi, o valor de si mesmo. O valor da vida. Da sua vida. Porque não haveria de chamar uma ambulância? Porque existem poucas no país? Para não aborrecer os médicos? Porque o identificador de chamadas do sistema do 112 fez a média de chamadas e analisou o grau de gravidade? Porque têm estes de decidir, com base em intuição e nada mais, quem é socorrido e quem não é?

O idoso é que está com a razão. Ele é que teve sempre presente os seus direitos. Vantagens que ás vezes as pessoas simples e de pouco estudos têm: a clareza de ver os seus direitos e deveres como eles devem funcionar.
Não somos nós que temos de nos adaptar a um sistema injusto. Que se lixe a falta de ambulâncias! Estou mal, tenho medo, chamo uma! É assim que se deve proceder. No dia em que não o fez, morreu.

Todos têm o direito a ter uma ambulância à porta, quando solicitada. Se não existem meios, criem-nos. Vendam uns tantos estádios de futebol pelo preço que gastaram na sua construção e comprem ambulâncias e dêm emprego aos desempregados qualificados que existem no mercado. Errado é não acudir.

Hoje abriu o telejornal da SIC com mais uma notícia triste destas. A notícia não deixa margens para dúvidas. É colocada no ar o audio de uma chamada telefónica entre o inem e os bombeiros. A coisa está muito mal! E vejo um ministro ou algo assim, a dizer que TODAS AS PESSOAS DEVEM RECEBER AMBULANCIA. Como o meu idoso recebeu? E outros por aí? Ainda por mais, andaram a colocar nas televisões anúncios a incentivar as pessoas a não telefonar para o 112. Anúncios que diziam que era prejudicial para os serviços atender a uma chamada de pedido de ajuda para o 112 sem ser uma emergência. Este anúncio abria dizendo quantas chamadas falsas o serviço recebe por ano ou mês e quantas vidas podiam ter sido salvas. Faz o povo sentir-se um criminoso, por querer ser socorrido.

Depois de ter visto a morte como resultado de uma destas “mensagens” de “não me incomodes” a menos que estejas a sangrar, não me fazem mais lavagens ao cérebro. Não tenho dúvidas: antes chamar uma ambulância a não chamar e alguém morrer. O idoso sabia isto. Da sua maneira. Poucos estudos, esperteza da vida, e soube mais do que eu.

Apartir de hoje vou esforçar-me para deixar a ingenuidade à porta e parar de ser tão crédula na boa vontade das pessoas e dos serviços. Temos direitos, cumprimos os nossos deveres. A vida é o bem que devemos preservar. Ela não deve terminar por falta de auxílio médico. Não por isso.

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