Um dia que tive livre apanhei um comboio e fui até uma região de Portugal que há muito queria conhecer. Fui sem dizer nada a ninguém, regressei sem contar onde tinha ido. Foi uma viagem só para mim. Não sei quantas horas para ir, outras tantas para regressar. Mas nesse dia fui longe, «saí», saí totalmente da minha rotina.
Passeei pela cidade, vi o mesmo que vejo em todas as outras. Até pobreza e miséria eu vi, ao avistar ciganos a viver nos degraus de uma capela assinalada como marco turístico. Notei que andava mais apressadamente que as restantes pessoas, mais vagarosas no andar. Trazia comigo a pressa do lugar onde vivo. E ali ela me denunciava. Entrei numa igreja- igual a todas as outras com os mesmos mirones que te olham de esguio, saí da igreja. Passeei pelas ruas, encontrei uma curiosa loja de chapéus (ainda existem lojas que vendem chapéus?) e um antiquário, repleto de lembranças de outros tempos que também de certa forma foram os meus. Fui parar a uma parte mais isolada, pisei a terra, procurando saber se tinha sido por ali que tinha vivido alguns dos meus, com a sua rotina de vida na quinta e animais. Nada senti.
Fui até as "ruínas" turísticas - uma capela abandonada à tanto tempo que bem que podia ruir. Edifícios assinalados como marcos turísticos mas que estão ao abandono. Aí não me estranharam, era "turista" como os outros. Continuei a caminhar, encontrei um edifício bonito com uns painéis de azulejo que me despertaram curiosidade. Aproximei-me cautelosamente, para observar. A porta abre-se. Uma senhora pergunta-me o que desejo da sua casa. Fico surpreendida. Peço-lhe desculpa pois desconhecia que se tratava de propriedade privada e como avistei os azulejos e o portão estava aberto, aproximara-me para espreitar e ver se existia alguma placa de identificação. A senhora já de alguma idade, convidou-me a entrar. Fiquei encabulada mas incapaz de recusar a simpatia, aceitei. Ela me conduziu pelas divisões da casa que entendeu adequadas, falando-me com orgulho do seu pai, dos seus feitos e da sua família. Mostrou-me retratos dos seus familiares, contou um pouco da sua história. Fiquei atrapalhada com o inusitado. Estava no lar de outra pessoa, descobrindo coisas sobre a sua família - quando tinha ido ali tentar encontrar algo sobre a minha. Então perguntei à antiga senhora que raramente saia da sua casa e tinha contacto com alguém fora do seu círculo de conhecidos mas que havia vivido todos os tempos de todas as mudanças, se conhecia um lugar com um certo nome. Disse-me que não. Viveu ali toda a vida e conhecia muita gente na região, pois a sua família era abastada, culta e benemérita. Mas nunca ouviu falar do nome que lhe dei. Achei nesse instante que me ocultava algo, mas não me ralei. A súbita familiaridade e a inesperada afabilidade que só outra geração é capaz de demonstrar fez-me sentir agraciada mas também atrapalhada, pelo que depressa lhe agradeci a amabilidade e regressei à estação de comboios. A pesar de tudo, apesar de admirar e sentir afinidade por pessoas de gerações mais velhas que a minha e de estar diante de uma senhora simpática e bem educada, a minha geração cresceu consciente dos perigos nas mais pequenas coisas. Como o perigo que é estar na casa de desconhecidos, em cidades desconhecidas, sem conhecimento de ninguém. O simples facto ia contra os mais básicos valores que me foram incutidos sobre segurança pessoal, desde a infância. Pisei cada divisão grata por ter sido convidada mas procurando não me colocar em esquinas fechadas, de onde não pudesse escapar se subitamente existisse essa necessidade. Pode parecer estranho mas é algo no subconsciente que acaba por influenciar o comportamento. No final agradeci a gentileza de ter aberto a porta da sua casa a uma desconhecida e fui embora, acenando adeus a ela e aos tantos gatos que passeavam na propriedade.
A pesar de toda a situação ser inusitada, simpatizei muito com aquela senhora e preocupei-me com a sua hipotética solidão. Até pensei em lhe enviar um cartão de agradecimento mas ao mesmo tempo tal gesto podia parecer invasivo, pelo que o descartei. Ao chegar à estação de comboios, já se encontrava ali uma carruagem parada. Estava no horario de partir e quis confirmar o destino. Dirigi-me novamente à bilheteria, ofegante porque corri para não perder a hora. Perguntei se aquele era o comboio que me levava onde queria regressar e o senhor que me reconheceu da chegada, perguntou se gostei do passeio e se vi alguma coisa. Respondi que sim e ele voltou a repetir que aquilo era uma terra que não interessava a ninguém e que se pudesse ia embora dali. Também me impressionou bastante a postura do bilheteiro, muito insistente em dizer para ir embora dali. À chegada quando precisei lhe perguntar dos horários de partida, ele insistiu muito para que fosse embora dali e fosse antes até uma aldeia de xisto mais adiante, um local segundo ele, bem mais interessante do ponto de vista turístico. "Aqui não existe nada para ver. Isto é uma terra morta de gente que não interessa" - responde ele.
Se calhar devia ter colocado as minhas questões ao bilheteiro. Sendo de uma geração próxima da minha mas já que tão taxativo sobre aquela terra, se calhar era ele a pessoa que me podia ter dito algo sobre a razão que me conduziu até meio involuntariamente até àquela terra que "não interessa para nada". Afinal, se os meus sentiram necessidade de sair dali e fazer vida noutro lugar, provavelmente o bilheteiro teria também as suas razões.
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