segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Os artistas que conheci


Acordei de um sonho. Neste sonho duas personagens muito famosas de duas histórias que vi na televisão encontram-se numa só. Os meus sonhos têm, desde a entrada na idade mais adulta, o inconveniente de serem esquecidos quase de imediato. Daí que a primeira famosa personagem que partilhava a história com outra, não recordo mais. A primeira parte do sonho foi para ela. Mas a emoção maior para mim, espectadora novamente, foi quando a banda sonora voltou a tocar. Aquela banda sonora que me trazia todas as emoções e mais algumas - tristeza, alegria, conforto, abandono... e que nunca mais ouvi. Esta melodia dá os seus primeiros acordes e eu fico agarrada a ela em êxtase, desejando que não termine com a próxima cena por desvendar. Na minha mente, que agora é a história, só se vê o interior de uma igreja pelos olhos de alguém a movimentar-se dentro dela. É então que aquela melodia que ouvi vezes sem conta por volta dos meus 13 anos é interrompida pelas personagens. (é sempre assim). 

Plano geral, lado direito de onde se movimentava a personagem. Cenário: o interior da igreja, mesmo antes de se chegar à ala do lado esquerdo. Essas duas personagens param ao se ver. Plano de rosto:

Padre: - Fulana!! (olhando bem para o rosto para acreditar).
           - Passaram-se 30 anos! (surpreso, mão erguida para quase tocar esse rosto, enquadrado por um véu de igreja)
           - Linda. Você continua linda!
 Figura misteriosa:
            - Deixe-me dar-lhe um abraço, padre! (diz emocionada e já indo abraçar). (plano médio por detrás do ombro da mulher)
            - Esse não muda, é o mesmo do tempo das dificuldades!  (plano médio com os dois)

Satisfação entre as personagens. Alegria de reencontro. Separação do abraço.
              - "Como ele está?" - pergunta a mulher.  (plano no rosto da mulher)


Foi com isto que sonhei e nesta parte despertei.
Vieram então à memória algumas lembranças daquele tempo. 

Lembrei o quanto naquela altura «entendia» a personagem. Olhando para trás, diria que foi impressionante o quanto a «conhecia» talvez pelo que partilhávamos em comum, salvaguardando as enormes diferenças. Essa afinidade diria que tornou-me intuitiva a seu respeito. Continuava a vê-la apenas como uma personagem de ficção, mas também tinha sido uma pessoa real e era com essa que, por vezes, parecia estar conectada. Algumas vezes a história era contada de uma forma que eu sentia que não tinha sido assim. Uma sensibilidade que reprimia e mantinha secreta. A sua vida separada da história começou a interessar-me. Em silêncio e em segredo, comecei a procurá-la.

Depois lembrei-me que anos mais tarde estive com a atriz que interpretou a personagem.

Separo muito uma coisa da outra. 
Não sentia particular gosto ou desgosto pela pessoa, pois não a conhecia, ainda que lhe conhecesse pormenores da vida pessoal e o seu fisico. Quando subitamente me vi na presença dela, não foi nada de especial. Foi normal. Para mim era apenas um rosto que me era familiar através de um monitor de TV e eu uma desconhecida, ambas com um momento em branco. Aproximei-me como me aproximaria de qualquer outra pessoa e falei do propósito que ali me levava. Esta pessoa teve uns segundos de "si mesma" e depois muito rapidamente, como se arrependida e assustada pelo momento de espontaneidade, fechou-se numa esfinge. Talvez por ter entendido que não conhecia de lado algum aquela estranha de rosto estragado. Senti repulsa emanando dali. Tinha de se proteger e fazia-o calando-se e despachando a pessoa. Podia ser mais um doido. São todos doidos.
Ficou com o rosto sério, sorriso só o necessário e amarelo, processo de assinatura de autógrafos em piloto automático. Rabisco igual em cada folha do livro e "próximo" a palavra que lhe sai da boca, também automaticamente. Seria até impossível não deixar de sentir que te expulsava com um tanto de repulsa, medo, até desprezo. 

Uma forma escolhida de se preservar. (Que não é nada simpática).

O artista pode sentir-se esmagado pela própria coisa que anseia: o público.


É engraçado porque, podia adorar todas as personagens que já fez na TV - o que não é o caso, mas esta coisa de afinidade nada tem a ver com o talento. Lembrei-me então de outras vezes que também cruzei com outros artistas das mesmas histórias, vistos pelo mesmo monitor. Cruzei-me com três em circunstâncias diferentes: uma sessão de autógrafos, uma formação, um convite. 

E na realidade, a qualquer momento a vida podia ter feito com que me cruzasse de muitas maneiras diferentes. Há quem procure, anseie e deseje o contacto próximo com os artistas que vê na televisão. Há quem sonhe. Eu? Nem por isso. Talvez até fuja.


Mas ponderava então sobre o real e o ficcional. Sobre esta pessoa não formava nenhuma ideia em particular, de modo que, quando a «conheci», não tinha expectativas e por isso estas não podiam sair frustradas. 

A da formação, foi a mais interessante. Porque dessa guardava uma impressão intuitiva que surgiu na primeira vez que a vi a fazer uma personagem na televisão - também durante a minha infância. Tive quase instantaneamente uma sensação de que não ia gostar da pessoa se a conhecesse. Uma forte sensação me dizia que, na vida real, aquela não era uma boa pessoa, estava longe de ser doce ou ingénua como a personagem que estava a interpretar. Achei que não ia gostar muito dela. Vai que no instante em que partilhámos o mesmo espaço, mesmo com toda a cordialidade de parte a parte, a mesma impressão mantinha-se. E o que é mais interessante: parecia ser mútua. 

Durante o tempo em que nos relacionamos profissionalmente, sempre existiu respeito, cordialidade. Mas nada além disso. Acho que ela usava máscaras sociais - todos usamos, mas que não conseguia ser autêntica em nenhuma, tendo propósitos ocultos e egoístas. E isso não encaixa com a minha forma de ser. Entendo a timidez, mas não entendo o disfarce. 

Não a achei má pessoa, nem boa. Só existiu mesmo aquela sensação de incómodo ou falta de afinidade. Mas o melhor foi mesmo a casualidade de poder ter tido a oportunidade de me confrontar com essa sensação que estava enterrada e de poder receber um retorno. E o que recebi pareceu ser mútuo. Nunca que nenhuma tratou a outra mal, sempre existiu educação, cordialidade. Mas lá no fundo mantinha-se o tal desconforto. Mútuo. Aquele do primeiro instante que senti na infância através de um monitor.

Adivinho que ela diria que são coisas de vidas passadas. Que não se explicam. 

Acredito que, por vezes, é mesmo possível entender algo da pessoa por detrás do que "finge" ser. Por vezes acerto na muche - mais do que parece. Foi o caso da terceira pessoa. 

Sobre esta só posso dizer que tinha sim uma certa impressão. Que era super talentoso! Achava que podia pegar em qualquer coisa e sair-se bem. Vai que quando a pessoa surge à frente, vejo um indivíduo muito dedicado e apaixonado pela sua profissão e muito tímido. Se o tivesse imaginado, imaginaria assim mesmo como se apresentou. Ainda assim, foi um choque. A sua timidez e humildade tornou-se íntimidante pela familiaridade. 

Pessoas que transmitem tanta garra e energia no ecrã, tanta virilidade ou sensualidade, por vezes, na vida real, têm tudo isso quase guardado em segredo dentro de si.  Não é coisa que saia para fora com a facilidade com que sai nas personagens. E talvez por isso seja tão agradável fazer essas personagens e se demonstre especial talento.



E pronto. Foi nisto que o meu sonho me pôs a pensar!
Durante toda esta exposição, a melodia não deixou de se pavonear de vez em vez pelos meus neurónios. 




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