quinta-feira, 19 de abril de 2018

Sensibilidade e empatia


Hoje no trabalho tive de lidar com um cliente que me emocionou. Era uma senhora africana que transportava uma criança fisicamente limitada, que terá nascido com problemas cerebrais que lhe afectavam seriamente. Aliás, a sua presença no Reino Unido devia-se somente aos tratamentos médicos que a filha precisava receber. 

Uma menina que não dava para perceber se o era ou não. Imobilizada que estava na sua cadeira de bebé, ainda que já não fosse um. Com distrofia muscular e total incapacidade de comunicar oralmente. 

A senhora chegou e eu era a portadora de más notícias: a viagem que ela tinha programado não era possível de realizar-se, devido ao que muitas vezes acontece: as companhias enganam as pessoas. 

Mas eu sou apenas uma empregada que começou à pouco tempo na função e tenho de seguir instruções. Procurei ajudar a senhora e fui pedir informações sobre o seu caso. Um colega apenas me respondeu: "não causes problemas para ti. Diz-lhe para se dirigir para lá e ela que espere". O que para mim não fazia sentido algum. Alguma vez mandar uma pessoa esperar a chegada do que não vai chegar é fazer o teu trabalho?? A situação muito me incomodou. Junto com pessoas mais responsáveis foi-me dito que não podiam fazer nada e que ela tinha, basicamente, de "desvencilhar-se" sozinha.

Essa falta de humanidade para com alguém que, ainda por cima, já teve as "cartas da vida" tiradas com pouca sorte, desiludiu-me. Fiquei tão incomodada que nem podia mais lidar com a situação. Intencionalmente, afastei-me do local para não ter de me revoltar com a aparente falta de empatia e comecei a desejar que o final do turno chegasse o quanto antes.

Mas será que é normal no Reino Unido as pessoas não quererem envolver-se?


Conduzi a pessoa até uma outra e daí adiante afastei-me. Temia o lamento, o choro, a conversa interminável sobre infortúnios... e eu de mãos atadas. Mas devo dizer que a senhora, junto com o filho jovem e saudável que a acompanhava, tiveram uma postura em tudo diferente. Não se exaltaram, não se surpreenderam, não se exasperaram, não gritaram ou fizeram ameaças. Talvez já soubessem sobre a viagem e fingiram que não? Mas quem faria tal coisa? Enfim... Eu admirei-os porque, talvez fruto das suas lutas pessoais, coisas como estas deixam de ser tão importantes. 

E devo dizer que, diante do infortúnio deles, até a minha própria fome e a ideia de ter o frigorífico vazio sem ter ideia do que lá por, me pareceu pequena. Eu ia seguir a minha vida, passar pelo supermercado, comprar algo para comer e dormir numa cama. E assim, de forma simples, resolvia as minhas necessidades mais imediatas. Eles não.

O meu turno já tinha terminado quando me cruzo com a senhora na área restrita aos funcionários. Vinha acompanhada de alguém que nunca vi antes e de imediato perguntei como estava a situação. A funcionária - claramente de uma hierarquia acima, é que respondeu. Tinham conseguido comprar uma outra viagem para o dia seguinte, mas a pessoa (com a sua filha com necessidades especiais) tinha de ficar a dormir na gare durante a noite. Tinham reunido umas tantas garrafas com água e iam indicar-lhe os locais mais reservados e quietos onde podia alojar-se enquanto aguardava novo transporte.


No regresso já no autocarro, fiquei a pensar na situação. Aquela falta de empatia inicial, a clara falta de vontade em envolverem-se nos problemas dos outros, afinal não era bem assim. Sempre foi feito algo, não deixaram a senhora, o seu filho adolescente e a sua filha deficiente à mercê da sua própria sorte. Alguma ajuda - ainda que pouca, foi facultada. 

Será que eu devia voltar atrás? E dar à senhora algo para comer? Dinheiro? Se pudesse até lhe dava um teto para dormir. E reflecti que já era a segunda vez, em quarenta e oito horas, que esse pensamento me vinha à cabeça. 

Aqui no UK sente-se que não nos podemos envolver muito. Ainda pensei em levar-lhe comida para ter mais do que águas para se aguentar durante a noite. Pensei mesmo regressar ao emprego, após 12 horas de trabalho, só para poder ajudar. Mas quis acreditar que outros ajudariam. Com comida sólida, com o que precisasse. 

Como funcionária no local, ao me envolver pessoalmente, ainda que fora do uniforme, podia comprometer o meu emprego. Aqui não se podem correr riscos. E é considerado um risco tentar ajudar as pessoas dando-lhes, por exemplo, uma peça de fruta. Ou um pouco de sopa. Pensei nas sopas que temos na sala do pessoal, que saem de uma máquina de distribuição automática. Pensei em as oferecer à senhora. Mas depressa lembrei-me: "não porque saem quentes e se ela se queimar ou algo acontecer com a criança, pode processar o estabelecimento e eu posso ser demitida por não ter de interferir onde não sou chamada". Porque aqui no UK pensam muito assim. A vida deles, em muitos sentidos, está condicionada aos receios dos processos nos tribunais. Processo pela falta de um sinal a avisar que o piso está escorredio, ter a comida quente demais, o café a escaldar, cabelos no prato, uma maça que faz mal ao estômago e alegadamente poderá ter sido propositadamente alterada para causar mal estar, etc, etc. Por isso é que tudo é tão "deslavado" - até a empatia. 

Lembrei-me também que, às tantas, a senhora reconheceu entre os trauseuntes, o seu pastor. Que é o lider espiritual. E no regresso no autocarro fiquei a pensar para que servem estes, se ela não poderia ter recorrido ao mesmo para solicitar ajuda. 

No final do dia, realizei uma pequena oração por eles e agradeci a Deus pelas bençãos na vida que me deu.

4 comentários:

  1. A maioria de nós, portugueses, temos a tendência natural de querer ajudar toda a gente que se encontra em dificuldades, sem pensarmos nas consequências que isso pode acarretar para a nossa vida.
    Abraço

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  2. Revolta-me sempre situações de injustiça ou de indiferença. A senhora não reclamou porque provavelmente já está habituada a essas situações e uma pessoa depois de tanto "apanhar" acaba por ficar calejada.
    E sim, quando vemos casos mais graves do que os nossos, ficamos a pensar que às vezes reclamamos demasiado.

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  3. Essa frieza é assustadora.
    As pessoas não têm alma, sentimentos?
    Bfds

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  4. Uma frieza assustadora!...
    Ainda bem que os portugueses, são um povo caloroso... e talvez por isso, sejam respeitados em toda a parte...
    Uma senhora africana... mais do que ninguém, as pessoas de pele escura, sentirão o estigma da diferença, e da indiferença na pele... é uma tristeza, que assim seja... e continue a ser, infelizmente... mas o racismo, e a xenofobia... ainda permanece, em muitos lugares... e sob muitas formas...
    Mas enfim! Melhor ou pior... mas a senhora lá foi encaminhada... para qualquer outro lugar...
    Beijinho
    Ana

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