quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

É Natal!!! E eu a lembrar-me de coisas do passado...

 E não é isso que se faz sempre?

Lembramo-nos dos que já partiram. Isso é sempre. Apreciamos mais aqueles que cá estão. E aproveita-se o curto espaço de tempo em que todos se juntam para comer, abrir presentes e contar umas histórias. 

Mas não tem sido isso que me tem vindo à cabeça. A história que me passa hoje no cérebro é uma de que me lembro amiúde. Gostava de a partilhar e saber a vossa opinião. Para já quero dizer que não me diz respeito. Vou contar uma história que não é minha e da qual posso apenas saber fragmentos incompletos. Mas aqui vai:

Quando era adolescente conheci uma outra adolescente através de um grupo de colegas de férias. Cada vez que havia férias, iamos para um sítio e o grupo de adolescentes desse lugar - algures no centro do Alentejo me apresentou a uma nova rapariga. A história dela foi-me logo relatada pelos adultos. Mas pediram-me para nada dizer, nem sequer dar a entender ou mencionar fosse o que fosse. É que ela tinha sido adoptada. O casal que a adoptou tinha muito dinheiro mas não podia ter filhos - a mulher era infértil. Na "terra", que era como chamavam o lugar, existiam famílias muito pobre e sem recursos. Que sobreviviam como podiam, geralmente da lavora, daquilo que a terra lhes dava, da criação de animais. Uma dessas mulheres muito pobre, com uma porrada de filhos homens para criar, engravidou novamente. Sem recursos para alimentar mais uma boca e aliciada e convencida pela senhora rica de que esta podia providenciar uma boa vida à criança, ela e o marido concordaram em dá-la para adopção. 

Não me perguntem mais nada - principalmente em termos logísticos, porque desconheço. Naquele tempo porém, não era incomum as adopções em "cima da mesa". A mulher grávida pensava que ia ter mais um menino e concordou em dar a criança para outra mulher cuidar. Ela, que sempre quis uma menina mas só tinha gerado rapazes. 

Quando a criança nasceu, foi então dada pela mãe à senhora rica e com posses, porém infértil e incapaz de gerar um filho biológico. Aquele filho dela - o terceiro ou quarto ou quem sabe até mais adiante na linhagem - não ia andar com roupas velhas, esburacadas, sujo de terra, descalço sem sapatos, com fome e sem poder estudar. Por aquele filho aquela mãe ia fazer o derradeiro sacrifício - pelo menos é assim que EU interpreto o gesto. E sempre interpretei - desde aquela altura. O sacrifício de dar um filho amado a outra mulher por puro amor, para que este possa receber uma qualidade de vida que a própria sabe que não pode dar. 

E nasceu o filho: uma menina. 

Custou BASTANTE àquela mãe cumprir o prometido. Mas fê-lo. O tal do amor de mãe, que é maior que o egoísmo, o desejo ou a vontade própria - viu que o "melhor a fazer" era dar a criança ao casal rico. Imaginaram a filha com boas roupas, bem tratada, com médico disponível cada vez que ficasse doente, a ir à escola estudar e a aprender a ler e escrever... e principalmente, a não ter de ser criada na miséria ou a alguma vez ter de vir a passar fome.

A dor de um estômago vazio, a pobreza de viver num casebre sem luz elétrica, água canalizada ou retrete no interior... um dos seus filhos tinha oportunidade de ser poupado disso. Porque aquele casal rico queria muito um bebé para si mesmos... e estavam dispostos a tomar o dela. 

Diria eu que o casal rico estava desesperado. Diriam o que fosse e fariam de tudo para conseguir meter as mãos num bebé recém-nascido e obter de uma mulher fértil o que deus não quis atribuir ao útero da infértil. Com a sua inteligência, maior cultura e melhor nível de vida lá conseguiram persuadir uma mulher pobre, ignorante, iletrada, de muitos poucos recursos mas consciente da vida difícil que levava, que o sensato e melhor a fazer seria dar o filho. 

Ela e o marido concordaram.

Pelo menos eu vejo assim. Ao longo dos anos dei por mim, muitas vezes, a me perguntar o que foi feito dessa mulher. Que já conheci sempre vestida de preto, embora viúva ainda não fosse. Ou será que era? De poucas palavras, cabeça cabisbaixa, ainda muito pobre, parecia tímida, até com medo de falar. Batia à porta das casas a vender a preço bem barato ovos fresquinhos acabados de sair das suas galinhas. Oferecia, portanto, serviço personalizado porta-a-porta, produto de primeira qualidade de ovos frescos de galinhas de campo, a preço de metade do que o do supermercado. (O que antigamente originava do desespero e hoje paga-se a preço de ouro). Vinha intencionalmente à casa da família rica para, nem que fosse de relance, avistar disfarçadamente a filha biológica. Filha essa que tinha dado para o casal, 16 anos antes. 

A filha sabia que aquela senhora era sua mãe biológica. 

E agora vem a parte que sempre me chocou: ela destratava a mulher. Gritava para que saísse porque cheirava mal e chamava-a de porca-suja. 

E não tinha problemas alguns em virar-se para mim para me dizer que odiava aquela mendiga porca, que detestava a mulher, que nem a podia ver, porque era pobre e suja e cheirava mal. Gritava-lhe para que fosse tomar banho! E que voltasse para a pocilga. 

Eu ficava com dó daquela mãe que, a meu ver, teve um gesto de amor. E se a filha estava ali à minha frente com roupas bonitas, armário a abarrotar de roupa de marca, bem vestida, bem cuidada, maquilhada, cheirosa, cheia e bens materiais, numa boa casa, cercada de luxo... devia-o a ela. Não tanto ao casal adoptivo mas ao gesto de abnegação da mãe biológica. Por quem a filha nutria uma repulsa visceral que sempre achei feio e exagerado. 

Claro, não sei os detalhes da história. Conto-a como me foi contada e como sei pelo que vi. Sempre me chocou o trato horrível que ela dava aquela senhora só por ser pobre e ter roupas velhas. Era uma senhora educada, simples, honesta. Vivia da venda do que os animais de criação lhe davam. Que eu saiba não melhorou de vida - isso era obvio - como talvez tivesse sido prometido caso entregasse a criança. Continuava pobre. Continuava a ter de dar e comer a várias bocas - agora ela também a trabalhar para o seu sustento. Aquela miúda mimada, fedelha, ruím, tinha irmãos. Ela que dizia-se "filha única" tinha manos... e não parecia interessar-se por nenhum. Uma vez disse-me que detestava aquela "porca que cheira mal e toda a sua família". Diminuia-os como seres humanos. 

Estava longe de imaginar, muito claramente que eu poderia saber a sua história de adopção e que ela estava a falar da sua mãe biológica. Mas eu sabia. E não gostava do que ouvia. Não ia gostar mesmo que não soubesse. Fazia-me impressão ver alguém ser destratado assim. Antes de saber e depois de saber. 

Mas eu também era uma adolescente como ela. Contudo, no meu entender, um casal rico com muitas posses com um desejo visceral de ter filhos não conseguiu e ao ver um casal pobre a ser abençoado com essa dádiva múltiplas vezes, decidiu que essa dádiva podia ser partilhada. "Porquê Deus dá tantos filhos a esta mulher que já tem tantos, e nenhum a nós? E se nós pedissemos a ela para nos dar a criança? Temos melhores condições, tanto amor para dar... aquela família é tão miserável, a bebé vai passar por dificuldades e nunca vai poder chegar longe como vai chegar se for nossa...

Eu simpatizava muito com aquela mulher mãe biológica. Todos diziam que era uma mulher de muito bom coração, incapaz de fazer mal a quem for. Uma paz de alma mas que estava permanentemente triste e nunca mais foi a mesma porque o seu maior desejo era ter uma menina e foi logo tê-la quando havia concordado em dar o bebé para adopção. 

Disseram-me que passou a andar sempre de preto a partir daí. Se é verdade ou não, não sei. Talvez não seja, porque o tradicional é adoptar o luto quando se morre o marido e assim permanecer para o resto dos seus dias. Mas sei - ou sentia no olhar dela - uma profunda tristeza e diria que uma eterna dor e arrependimento. Mas pobre e ignorante não sabe muito - sabe apenas cumprir a palavra - porque é o que de maior valor têm e o que entendem como honra. 

Uma mãe faz este grande gesto e depois, não importa as patadas que recebe, a distância que tem de adoptar, a palavra "minha filha" que nunca pode verbalizar e ainda assim, fica por perto... É porque ama. Qualquer outra pessoa teria se afastado ao sentir na alma a dor de ouvir a filha destratá-la vezes e vezes sem conta. 

Eu também andaria perpetuamente com uma tristeza a apertar-me o coração. Uma espécie de morte. E por fora o expressaria com roupas pretas - como era costume na época. 

QUIS falar desta história porque hoje - dia de Natal, quem encontrei eu no facecoiso? O perfil da criança adoptada. Que é hoje uma mulher na casa dos 50, mãe de um homem (claro, o gene masculino do seu autêntico ADN a prevalecer). E pergunto-me, até hoje, se alguma vez ela quis estreitar os laços com os seus ou se passou ao filho a informação da sua origem.

Mas o que me voltou a chocar foi a pessoa que ela aparenta ser nesta rede social. Sempre sorridente, a maioria dos seus posts são para elogiar rasgadamente a mãe adoptiva - dizendo que é a pessoa mais importante da sua vida, a mais amada, aquela que lhe é tudo e a quem tudo deve. Faz-lhe muitas juras de amor. Escreve também, mas principalmente agora na altura de Natal muitas mensagens de amor ao próximo, de compreensão, afetividade, para se dar amor para se colher amor de volta.

E pergunto-me ONDE ESTAVA esta pessoa quando esta estava para complementar 18 anos? Onde estava esta filosofia de vida e forma de encarar as coisas enquanto gritava para a mãe biológica "sai daqui sua suja, cheiras mal!".

Claro que sei que se trata de uma mulher adulta e não faço ideia como se desenvolveu a sua moral e conduta social. Mas, se as pessoas, por dentro, no fundo, se mantiverem iguais, será que, por detrás de toda esta carapaça exterior de mulher 100% com os valores no lugar certo, ainda está a adolescente repudiante que maltratava verbalmente a mãe biológica?

Enquanto lia, com um pouco de enjoo pelo excesso de doçura naquelas palavras a elogiar a mãe, perguntei-me o que seria feito da outra mãe. Queria ter escrito nesse post: "E a tua mãe biológica? Ainda é viva? E os teus irmãos? O que é feito deles?". 

Eu não entendo. Porque no meu entender, se fosse comigo, eu ia gostar de saber que tenho uma mãe que adoro e outra mãe que me deu para ter uma vida melhor. Ia querer me aproximar da família biológica e ia querer vê-los bem de vida.

Me perguntava o que ganhou aquela mãe em dar a filha? Continuava pobre. Continuava a ter honra e a ganhar a vida honestamente, com a venda de ovos e legumes. Não gostava de aceitar esmolas - embora aceitasse um extra (bem justo, porque vendia quase dado - ás vezes até dava, não queria cobrar. Principalmente na casa onde morava a filha). Tenho quase a certeza que o casal rico prometeu ajudá-la. Em que sentido não sei. Isso só um deles poderá responder. Mas aquela mãe fez o derradeiro sacrifício por um filho, foi incompreendida e sofreu o Diabo na terra pela decisão que tomou. E da qual, segundo me disseram, se arrependeu. 

A sua filha era para ter nascido pé descalço e sujo da terra. Virou uma menina mimada com tudo disponível e a quem tudo era permitido. Espero que tenha crescido e se transformado numa pessoa diferente daquela que me recordo. Porque dessa pessoa... eu nunca gostei. 

E venham os facebooks revelar que agora é tudo "sejam amigos uns dos outros, o melhor do mundo é a família, amo minha mãe, a melhor do mundo"... E então e a tua outra mãe? Isso aplica-se a ela também? 

Repito: se fosse comigo, ter mais pessoas na família e muitos irmãos? Ia ser uma felicidade! 


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