quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Comprei um cão



De louça. E vim toda feliz para casa por o ter comprado. 
Não estava na minha ideia fazer compras de artigos que não preciso e não são essenciais. No entanto, lá estava eu, a sorrir e a segurar o dachshund na mão.  


Minutos antes tinha avistado aquelas carnes secas para os cães mastigarem e sorri, porque despoletou lembranças. Terá sido por isso ou terá sido por já ter convivido com a raça?

Ou será outra coisa totalmente?


Pelo caminho lembrei-me do peluche. 
Há umas semanas encontraram um peluche que acariciei. Era muito macio e o gesto de passar a mão pelo boneco despoletou instintos maternais. Na ocasião até brinquei com isso. Disse que pensei já ter transitado para a fase "apetece-me dar uma chapata neste puto" e afinal ainda existiam em mim resíduos de cuidar e tomar conta da raiz até a idade da independência.

O que me trouxe outro tema à lembrança: este.

Sim, pode-se ter saudades do que nunca foi nosso. Como não?
Eu sinto saudade da filha que nunca tive e dos irmãos que lhe ia dar.


E nesse aspecto, ter encontrado à momentos um cabelo branco solto na indumentária, um que me passou despercebido, que não se fez anunciar, traz aquela sensação de tempo perdido, vida desperdiçada. Aqui estou eu, numa situação tão precária como se tivesse começado agora a minha vida de independência financeira. Não tenho nada que muitos outros têm: casa, família. Estou tal e qual como estava há 25 anos. Como se tivessem feito um bruxedo para ficar estagnada. A diferença está mesmo nos cabelos brancos. Eles surgem para me lembrar que o tempo está a acabar, se não é que já acabou. 

E, a pesar de tudo isto que não é animador, tenho o queixo nivelado e estou bem. (Terá sido o datchshund?). É o que é e será o que for.


Faz umas semanas um senhor de idade que, junto com outros, fazia trabalho voluntário no sítio onde trabalho, veio ter comigo e disse: "Hoje é o nosso último dia aqui, vamos embora" - estava visivelmente triste. Nunca o tinha visto antes e com ele nunca tinha falado. Mas isso não o impediu de dirigir-se a mim como se fossemos conhecidos de longa data.

Como alguém pode voluntariar-se para trabalhar de graça num lugar onde a maioria das pessoas que passam exigem tudo de ti sem serem bem educadas, é algo que me transcendia um pouco. Mas não é preciso pensar muito no motivo pelo qual aquelas pessoas exibiam, desde o primeiro instante, uma alegria radiante por ali estar. Ou tristeza por ter chegado ao fim. Vi-os nos olhos, nas palavras, nos gestos. Foi na ideia "para o ano há mais" ou "talvez nos chamem de volta no Natal" que encontraram o consolo que necessitavam.


Estão sós. Não têm muito convívio com outras pessoas. E é a rentabilizar em cima disso que outros tiram proveito. O senhor acrescentou com um tom guloso que o voluntariado não é de todo não pago pois pagam-lhes 40 libras mensais para o estacionamento e deslocação. Trocos minha gente... trocos. Digo que acrescentou isto com um tom guloso porque deu para perceber que algum dinheiro fazia a diferença. Não é só solidão e necessidade de estar em contacto com outras pessoas. Ao ponto de uma multidão delas, muitas mal educadas, ser o ponto alto pelo qual anseias ao acordar. 

É também a verdade oculta deste país: os idosos não têm todos uma reforma decente. Os que trabalharam a vida inteira em funções de "colarinho negro" (da época do carvão, ahahah) e sempre foram um pouco explorados, são os que melhor aceitam sem contestar o perpectuar dessa condição. Em troca de "migalhas".


E há sempre quem se aproveite. 
Chamam-lhe "voluntariado" mas também existem empregos. É comum ver cabelos na sua totalidade brancos, em rostos muito enrrugados, atrás de um balcão qualquer. Uma vez fui atendida por uma senhora muito simpática mas cuja idade pude perceber ser bastante avançada. Pela pele enrrugada por todo o corpo, braços, rosto, peito, diria que estava nos finais dos 70 ou mesmo já nos 80. Parte de mim ficou curiosa para saber porquê estava ali a fazer aquele serviço, ao invés de ficar em casa e dedicar-se a outros afazeres mais relaxantes e mais da sua escolha e preferência. Outra parte de mim não estranhou, porque sei que é no trabalho que encontro a minha felicidade interna e bem estar.


E foi por isso que, quando aquele senhor que estava no último dia de voluntariado se afastou, deixando no ar o distinto aroma de má higiene e usando roupas a necessitar de cuidados de engomadeira, subitamente percebi: Aquele ali já sou eu!

Aquele ali serei eu.
Falta pouco.
Na realidade já tenho tudo o que é preciso.
Só falta mesmo ficar permanentemente associada à idade avançada. 

4 comentários:

  1. Nenhum país é para velhos amiga. Ou talvez sim, talvez a Suécia ou a Suíça o sejam. A grande maioria não é. Os políticos não fazem leis que protejam os idosos, mesmo quando aqueles que as fazem estão nessa faixa etária. Porque eles têm regalias especiais e não sofrem na pele o que o povo sofre.
    Penso que quem não constituiu família terá maiores dificuldades em enfrentar a velhice, porque para esses a solidão é maior. No resto é a mesma coisa.
    Fiquei muito triste com este seu post. Espero que a sua vida melhore substancialmente. E que ainda possa encontrar a sua outra metade. Porque eu acredito que todos a temos. Tive uma tia que nunca teve um namorado, se apaixonou aos 60 anos e viveu muito feliz os últimos 12 anos da sua vida.
    Um forte abraço

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  2. A Elvira é uma pessoa muito doce. Obrigada pelas suas palavras. Não fique triste porque isso me deixa aflita. A situação descrita é o que é, será o que será. Não é bom, nem é mau. Sinto-me bem. Não é só o destino que me trouxe aqui. Também contribui para estar onde estou, e muito. Sou a principal responsável. Tive ajuda daqueles que mais amo - e eles, sem saberem ou o admitirem, foram os que me puseram na trilha em que estou desde muito cedo.

    Os jovens rebeldiam-se por bons motivos. Hoje sei isso. Nunca o fiz, embora contestasse tudo. Segui o rumo que outros queriam para mim, da forma que achavam que tinha de ser. Não segui O MEU. O dizer acima é bem verdadeiro. Enfim, desabafos frutos de aprendizagem de vida que só o envelhecer proporciona :)

    Não fique triste, Elvira. Porque isso me entristece. Tenho fé e enquanto essa existir, há sempre esperança.

    Fico feliz pela sua tia. A Elvira consegue sempre relatar um ado bom do que parece ser uma situação pouco desejável. Que Deus a mantenha assim.

    Obrigada e boa semana.

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  3. Está com receio de envelhecer?
    Join the club.
    Todos temos.
    E de envelhecer sós ainda mais.
    O que não nos deve sentir forçados a procurar uma companhia.
    Tudo o que é forçado dá asneira.
    Lembra-se do filme a Condessa Descalça e do célebre mantra "que sera, sera"?
    É muito isso.
    Bfds

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    Respostas
    1. Ter companhia é o que não procuro. Não no sentido indicado. E claro que forçado, nem pensar. Se acontecer, optimo. Mas prefiro desacompanhada a mal acompanhada. Só senti vontade de tomar conta de crianças, não de marido eheh. Sinto falta de ter tido filhos e sinto falta de os ver crescidos e com filhos proprios. Um vazio que, se calhar, tem alguma explicação no facto de ter usado esse sentimento em benefício de outros e não próprio. Explico: ajudei a criar filhos de outras pessoas. Passei por elas sem ter "direito" a "beneficiar" do lado familiar.

      O que tenho receio é de continuar numa situação precária sem nunca ter estabilidade ou um lugar só meu, seguro, o meu teto e o meu chão. Envelhecer custa muito - mas acho que no meu caso custa não por estar a envelhecer, mas por ter desperdiçado o tempo que tive até cá chegar. Envelhecer tolera-se melhor quando se vive.

      Envelhecer só não me assustaria muito se pudesse contar com amigos. Se ao menos a amizade fosse algo que se criasse com facilidade! Mesmo no decorrer dos anos... Mas é algo que se aprende na infância ou então... talvez nunca.

      Envelhecer com família e amigos deve ser diferente de envelhecer sem. Se bem que constatei pelos meus que, envelhecer e sentir-se sozinho porque os melhores amigos vão morrendo, é uma solidão à parte, que força a pessoa a temer a própria mortalidade e a faz pensar se será ela a próxima ou se será outro amigo, e ponderar qual das hipóteses é a pior.

      Enfim, considerações cá minhas.
      O Pedro tem que receios?

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