quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Escrever livros


Pergunto-me: se passasse por uma experiência socialmente conotada como especialmente trágica, se a seguir ia escrever um livro a relatar os factos.


Verifico que muitos que passam por certos dramas, pequenos ou grandes, escrevem livros sobre os mesmos. Depois, outro, e mais outro... Porquê?

Também tenho dramas. Que tenho vindo a contar nos meus diários ao longo dos anos. Mas desses ninguém quer saber, a menos que terminem em sangue ou morte. Porquê este fascínio pela derradeira tragédia conduz à escrita de livros??


Há apenas umas décadas, as famílias que passavam por tragédias remetiam-se ao recato, ao silêncio. Não ficava bem explorar o assunto. Algo privado e muito sensível, cujo respeito demonstrava-se por não forçar as vítimas a recordar nem o explorar de alguma forma. Actualmente ocorre o fenómeno oposto. Publicam-se livros, e depois outros, mesmo quando não se tem mais nada a acrescentar. Porquê? O que mudou? Não é o sofrimento igual? 



Natascha Kampusch, a menina austríaca raptada aos 10 anos de idade, escreveu, em 2010, um livro a relatar a sua história, quatro anos após escapar do cativeiro. Agora volta a escrever outro, supostamente a relatar como tem sido a vida nestes 10 anos de liberdade. Entre os dois livros por si lançados, existiu um programa de televisão, deu imensas entrevistas, a primeira logo 15 dias após a fuga, onde pagaram-lhe 290€ ao minuto, entrou com um pedido de 1 milhão de indemnização ao Estado Austríaco por incompetência dos serviços policiais em resgatá-la, comprou e ainda é proprietária da casa onde viveu em cativeiro e os pais escreveram os seus próprios livros: a mãe em 2007, o pai em 2013, ambos best-sellers. Agora, em 2016, Natasha, que diz querer passar despercebida, lança mais um livro sobre a sua tragédia pessoal.


Vivemos numa altura em que possuir no currículo uma tragédia pessoal é ter porta aberta para muita coisa. Exploram-se os dramas como se fossem limões que têm de ser espremidos até dar o máximo de sumo, colocam-se umas gotas desse sumo com muita água, e serve-se como limonada. 

Destaque na capa da revista TV GUIA, nº 1963
A distorção da realidade*1 - obvia para mim, mas certamente invisível para outros.


São as revistas cor-de-rosa e os jornais a destacar na primeira página qualquer «dramalhão», real ou fictício. Distorcem títulos para aparentarem um significado, sabendo que têm outro. São os programas televisivos de talentos - os quais não consigo ver por originarem repulsa - a inventar e a explorar dramas para «colar» aos concorrentes. Porque o que fica bem é ter pais toxicodependentes, pai na prisão, ter sofrido um acidente de viação quase fatal, é ser gay, sofrer de uma doença que gera comoção, é ter a avó internada no hospital às portas da morte ou melhor ainda: já ter um dos pais a servir de comida às minhocas, para que esse drama possa ser explorado para fazer um programa televisivo, ao qual os requisitos necessários para participar deviam limitar-se ao saber cantar, dançar, cozinhar, etc. Mas não! Isso é secundário. 

Escrever livros, participar em programas televisivos da vida real ou de talentos ou fazer capas de jornais e revistas explorando as tragédias pessoais.

Se ontem entendia o poder catártico da escrita e do livro, hoje entendo-o menos do que «ontem». E, sinceramente, tenho zero interesse por histórias que me são apresentadas desta forma. 


*1
Leitura real dos destaques da revista TV GUIA - a revista mais sensacionalista e que reserva uma secção nas suas páginas só para maldizer a concorrência (TV 7 dias):
FERIDO COM TRÊS FACADAS: o ex-concorrente de um reality show, mostrando, na verdade, o quanto está pouco habituado às lides do trabalho, cortou-se três vezes quando estava a cortar carne no seu talho. Diz ele que trabalhou até o fim sem se queixar e ninguém percebeu nada - depois de ter cortado a ponta do dedo e sangrado. Humm... vocês voltariam a comprar carne num talho onde o talhante sangra de um ferimento, arriscando a passar esse sangue para os alimentos e ainda acha que isso é de louvar?

TRAI FAMÍLIA POR CEM MIL EUROS: Todos já sabem que a ex-concorrente de reality show está a participar noutro programa, em frança. A "traição" é o isco usado para chamar a atenção. A realidade é tão somente essa. O prémio final são 100.000€, fácil de deduzir. 


5 comentários:

  1. Tenho verdadeiro horror a esse tipo de exposição e, mesmo no blogue, prezo a minh intimidade a todo o custo.

    Relativamente às casas da Costa Nova, informei-me. Eram chamados de Palheiros, surgiram no fim do século XIX e eram usados pelos pescadores que aí guardavam material. Só muito mais tarde foram aproveitados p
    Como casas de férias.

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    1. Oh, obrigado por essa sensibilidade :) Fiquei a pensar que, se calhar, em Aveiro era costume existirem os palheiros listados. Acho uma bela ideia mas sempre pensei ser um conceito americano, a própria representação icónica de praia.

      Agradeço também o ter passado por cá para comentar. Assim fica mais fácil dar com os blogues que vou lendo. Basta carregar no link :) Nem sempre tenho paciência e lembrança de os armazenar para mais tarde voltar.

      Boa semana.

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  2. A cultura, o fascínio, da desgraça alheia.
    Tristes tempos em que as pessoas se alimentam da infelicidade alheia.

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  3. Será que é isso o tal sensacionalismo? Ou andará lá perto?

    Da vida alheia muito gostam os outros de saber. E dos que dão a saber a sua vida aos outros, se isso for rentável, porque não? A vida está difícil, portanto se der para ganhar uns valentes tustos...

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    1. Não me interpretes mal, não sou contra quem tem algo a dizer e quer fazê-lo em livro. Compreendo e se calhar faria o mesmo. Mas é o excesso, é o pretexto e o facilitismo com que tudo é exposto e explorado.

      Desde quando é que me interessa saber «a história de coitadinho» do concorrente que vai ali tocar viola? Porque vai existir uma! Tem de existir...

      Para quê quero eu comprar revistas ou jornais que tenham títulos manipulados? Nem sei como dizem que vendem mais, eu parei de comprar quando as coisas começaram a ser pouco informativas e mais sensacionalistas. E agora que existe de graça na net, quem compra revistas e jornais? São os títulos fantasiosos e distorcidos que fazem as revistas sair das bancas?? Talvez.

      Não sei se se ganha tanto dinheiro assim por se escrever livros. Sempre ouvi falar que não. Mas se isso fosse mesmo verdade, «coitadinhos» dos nossos autores, né? Exceptuando para o José Rodrigues dos Santos, que tem um chorudo salário fixo que lhe devia bastar para não ter de se preocupar com mais nada.

      É um exagero. Chega-se a inventar que existe algo para se dizer.

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